Uma fotografia de escombros, cujas marcas revelam o espectro de antigas paredes que antes existiam no ambiente

Editorial

Maio de 2017

Eduardo Liron

Um olhar para cidade

A segunda edição da AGRESTE - Agrupamento de Estudos Excêntricxs, finalmente lançada nesse ano de 2018, teve quase a totalidade de seus conteúdos coletados no ano de 2016. O conjunto de acasos sociais, econômicos e políticos que afetou o cenário nacional nesse mesmo período, contudo, acabou levando a equipe a suspender os trabalhos editoriais por um tempo mais largo que o planejado inicialmente. Nesse meio tempo, como que para manter a chama acesa, a revista limitou-se a participar com uma coluna semanal na ZAGAIA, onde publicamos a tradução dos mais variados manifestos cinematográficos. Um compilado desse trabalho se promete, organizado e ampliado, em alguma edição futura da AGRESTE. Ao que diz respeito à edição atual, contudo, é preciso reforçar que mesmo diante de tão longo período de silêncio, e ainda que os debates que aqui se apresentam possam carecer de certa atualização quanto ao desenrolar de nosso cenário político, eles certamente não perderam sua relevância e atualidade.

Nessa edição nos propuzemos pensar estética e política à partir da cidade, seja em sua forma material, manifesta na arquitetura e no urbanismo, seja nas relações que constituem a urbanidade. A opção por essa temática intenciona um primeiro passo para situar o horizonte complexo diante do qual nós, artistas e seres políticos, procuramos atuar. A cidade, para nós, não é um ente ordenado ou o símbolo de um governo da razão. Pelo contrário, é o palco de disputas, do excesso de fluxos e corpos, de relações de poder, de injustiças e desigualdades. É também um espaço de vivência, de festas, de invenção, de resistência e de êxtase. É uma complexidade tão perigosa quanto sedutora que, de forma mais corajosa que prudente, buscamos nos aproximar.

Lefebvre foi o primeiro espírito invocado em nossa empreitada. Sua postura assertiva e seu estilo irreverente pautam, em Visto da Janela, uma perspectiva do urbano como uma entidade dotada de fluxos e ritmos. A escolha de tradução desse texto, para além do evidente interesse científico, presta homenagem a um pensador que se faz a cada dia mais presente, haja visto que seus textos e reflexões têm influido de maneira ímpar nas formas contemporâneas de reivindicação do espaço público.

Maureen Turim, em O Deslocamento da Arquitetura nos Filmes de Vanguarda, trabalha o aspecto político da arte, problematizando as formas de representação e apreensão do espaço urbano enquanto imagem. Nesse sentido, apresenta em seu texto a imagem como ferramenta de crítica e tensionamento da própria cidade.

Nesse contexto, duas produções audiovisuais realizadas pela equipe da AGRESTE são apesentadas em desafio, cada uma a seu modo, a alguns problemas atuais do espaço urbano: Mobiliário Urbano é um experimento de narrativa web que procura desenterrar algumas histórias de exclusão e segregação no desenvolver da cidade de São Paulo. Sua narrativa se constrói de maneira aleatória – de modo que nos defrontamos com um filme diferente a cada acesso do site. Derrubada, de Mirrah Iañez, explicita os conflitos entre propriedade e direito à moradia, questionando as relações territoriais da cidade.

Jordi Carmona Hurtado, num potente deslocamento de perspectiva, ousa Revolucionar a Posição do Espectador. Desmistifica qualquer possível suspensão contemplativa em favor de um espectador presente e atuante. Wellington Sacchi, na mesma esteira, se propõe a pensar a fotografia enquanto dispositivo que age e pensa através de seu espectador: Fotografia.exe.

Aproveite sua Próstata, Gênero e Educação e É o Baile reivindicam, cada qual a seu modo, os processos sociais de subjetivação. Vinícius Nascimento e Daniela Avellar apresentam uma obra bem humorada, originalmente exibida como uma série de lambe-lambes, questionando concepções socialmente construídas de gênero e sexualidade; Dodi Leal realça o papel da educação como ferramenta de desenvolvimento de uma cidadania inclusiva; enquanto Vine Ferreira se aprensenta de forma expreminetal num tríptico de vídeos, reivindicando o direito dos corpos e do uso dos espaços.

Duas reflexões/críticas acerca de filmes relevantes da hisória do cinema nacional também integram essa edição nos textos de Bruno Vieira Lottelli e Renato Alves. Lilian M (Relatório Confidencial) pensa o feminino na cidade e desenvolve uma reflexão acerca do cinema de Carlos Reichenbach, enquanto A Narrativização do Sertão em o País de São Saruê pensa as relações de memória e construção narrativa sobre o imaginário do sertão a partir do filme de Vladimir Carvalho.

Seguem-se duas obras que partem das memórias afetivas como catalizador à postura crítica: Sobre Escombros e Beringelas, de Lívia Pícolo, experimentando somar áudio e texto, remete às memórias de sua infância como mecanismo de denuncia dos processos políticos que ocorrem atualmente na Síria; e yann beauvais, em sua segunda participação em nossa revista com o texto Lembranças: Cidades Vizíveis, reflete sobre sua própria atividade de filmar cidades enquanto mecanismo de descoberta e reinvenção destas.

Por fim as irmãs Olga Letícia e Yolanda Gloria Gamboa Muñoz nos apresentam uma narrativa afetiva que percorre aspectos da história política chilena, durante três gerações, a partir de uma perspectiva feminina. A edição digital de As Ânforas livro de ficção é de distribuição livre e abre-se aqui como uma ação reivindicando ao acesso livre ao conhecimento e aos bens culturais.

Essa é a forma que se apresenta essa edição e, diante de um cenário de tantas incertezas, parece adequado seguir olhando em direção à cidade. Apesar de os esforços das hegemonias em desmaterealizar o poder, tornando-o metafísico e, portanto, inacessível; marcamos aqui atentativa de recordar que a palavra grega polis é a raiz sobre a qual se sustenta o termo política.

Avanti.