Fotografia de um prédio deadente na cidade

Lilian M (Relatório Confidencial)

Bruno Vieira Lottelli

Lilian M (Relatório Confidencial) - 1975, cor, 120 min, dir.: Carlos Reichenbach

A questão central de Lilian M (Relatório Confidencial) é sua heterogeneidade. Em uma crítica ao filme de 1975, ano de seu lançamento, Paulo Emílio Salles Gomes já destacava a hipótese ao afirmar que os defeitos da fita eram tão evidentes quanto os próprios acertos. Uma produção independente de Carlos Reichenbach - que além de produtor, foi diretor, roteirista e diretor de fotografia - cujo argumento consiste nas confissões amorosas de uma mulher para uma dupla de entrevistadores. Conforme o relatório confidencial se desenrola, passagens de sua memória transformam-se em sequências do filme e remontam fases singulares de sua vida, marcadas pelo universo particular de cada amante da confidente.

A série de desventuras começa com a protagonista em sua origem rural, onde o sofrimento em família diante da pobreza na lavoura é interrompido pela chegada de um mascate histriônico vindo da cidade grande. A seguir, a trama acompanha a fuga da protagonista do rincão à urbe - passando pela morte trágica do mascate em um acidente na estrada - onde ela viverá momentos típicos de filmes de aventura, policial, terror e comédia. Ao longo dessa trajetória, a protagonista desenvolve-se transformando gradualmente a lógica de suas ações e os termos de suas relações com os homens. A combinatória entre uma personagem principal em transformação constante e a variedade de universos derivados das personagens secundárias resulta no encadeamento de experiências heterogêneas, tanto no nível da estrutura narrativa quanto da mise-en-scène.

A estrutura da narrativa é marcada por uma cisão entre os tempos internos à diegese: as sequências do depoimento situam-se no apartamento da protagonista no ponto mais avançado de sua trajetória, enquanto as demais sequências remontam a um longo flashback que, apesar de avançar aos saltos, representa cronologicamente alguns acontecimentos do seu passado.

Vale a pena lembrar o interesse de Carlos Reichenbach pelas representações em tempos diegéticos cindidos - sejam atravessadas por um depoimento, um pesadelo ou, simplesmente, um resgate da memória - retomado em obras posteriores como, por exemplo: Filme Demência (1986), Alma Corsária (1993)e Dois Córregos (1999). A respeito do funcionamento desta estrutura em Lilian M. (Relatório Confidencial),pode-se dizer que as sequências de depoimento funcionam como uma espécie de moldura épica para o drama heterogêneo que se desenvolve em seu interior. De tempos em tempos, a moldura externa é acionada para organizar os episódios, dar-lhes uma síntese e convocar o próximo.

Elementos visuais reforçam essa noção de emolduramento, uma vez que o primeiro e o último planos do filme mostram o gravador sonoro que estaria registrando as confidências da protagonista sendo, respectivamente, ligado e desligado. É preciso apontar ainda que o flashback dramático possui uma moldura própria, composta pela segunda e pela penúltima sequências do filme, situadas no propriedade rural de onde partiu a protagonista, nas quais apresentam-se os fatos que levaram-a migrar para a cidade e, posteriormente, assistimos seu breve retorno à roça, seguido de uma segunda fuga. Essas duas molduras reverberam entre si e fazem ecoar as transformações sofridas pela personagem e suas diversas experiências entre o ponto de partida (moldura interna ou dramática) e o ponto de chegada (moldura externa ou épica).

A sequência dos créditos iniciais oferece informações instigantes acerca dessas reverberações. O título comercial da película surge na primeira cartela em letras amarelas sobre o fundo preto, na qual lê-se: em letras enormes ao topo "LILIAN M"e, em letras menores abaixo, "(RELATÓRIO CONFIDENCIAL)". Portanto, a ênfase maior é dada ao sujeito, ou melhor, à sua identidade ao mesmo tempo composta e interdita. Fica em segundo plano (e entre parênteses) sua ação fundamental dentro do filme: realizar um relatório confidencial. De modo que o interesse principal reside na forma como a identidade da personagem principal se constrói a partir de sua ação, a meio caminho entre a opacidade e a transparência.

A cada confissão amorosa a narrativa dá um salto e encontramos a protagonista em uma situação diversa, repleta de novas peripécias, cujo desfecho a levará a outro relato e assim por diante. Sintomática, a primeira sequência de do filme - montada apenas sobre imagens do gravador de áudio - apresenta em off o seguinte diálogo entre o entrevistador (E) e a protagonista (P):

E - "Comecemos… Seu nome, por favor."

P - "Célia Olga"

E - "Nah… Seu nome no filme!"

P - "Lilian"

E - "Seu nome verdadeiro no filme!"

P - "Maria"

E - "Ok, Maria.. Por onde que a gente começa, hein?

P - "Pode começar por onde você quiser… ou então pelo início mesmo"

Assim, em 30 impressionantes segundos, a obra instaura o jogo de extrema complexidade entre sujeito-ação e construção-identidade. "Célia Olga" é o nome da atriz, instância sem a qual a personagem sequer existiria. "Lilian" é o nome social adotado pela personagem ao longo de sua trajetória, sendo "Maria" seu nome de batismo e ponto de partida do flashback. Cada resposta modifica a um só tempo a identidade da protagonista e a relação do espectador com as camadas que organizam o filme. Dessa forma, quando Célia Olga/Lilian/Maria sugere começar os relatos de sua história desde o início, a cena interrompe o seu fluxo e a narrativa prepara uma volta ao passado da personagem, passando da primeira moldura para a segunda.

A cena do depoimento retornará em outras oportunidades ao longo da projeção, pontuando anúncios de transformação na trajetória da heroína, em geral através da entrada de um novo amante e, com ele, novas formas de encenação. Por sua vez, a moldura interna criada pela ambientação rural irá revelar o interesse de Reichenbach por idas e vindas, repetições e reinvenções. Maria deixa o sítio para viver na cidade, Lilian deixa a cidade para voltar a ser Maria no sítio, mas constata a impossibilidade deste retorno e, por fim, abandona o sítio mais uma vez. Essa operação de reinventar as trilhas já pisadas pelo filme produzirá ainda outros efeitos, como ecos entre personagens do começo e do final da trajetória - entre o histrionismo do mascate e do grileiro, por exemplo - e, mais eficazmente, criar um curto-circuito com a moldura épica ao inibir sua função de anunciar as novas fases da vida da protagonista. Na medida em que se desenvolve, poderíamos mesmo dizer que se emancipa, a protagonista passa a prescindir da estrutura épica para anunciar seus novos relacionamentos e contextos, podendo resolver "ela mesma" no interior do drama o desenrolar de sua trajetória. Nessa relação entre as molduras e os créditos iniciais temos que Célia Olga interpreta Lilian, que relata suas experiências desde o tempo que era Maria, que entretanto em sua jornada passou a assumir-se cada vez mais como Lilian, a ponto de quase eclipsar Maria, restando-lhe apenas o M. para compor sua última identidade.

Logo após o título, surge na tela uma segunda cartela na qual lê-se "TRAGICOMÉDIA DE AVENTURAS COM", seguida da apresentação do elenco. A inscrição de quais seriam os gêneros narrativos no interior da obra, além de inusitada, cria expectativas e prepara os olhares para o que virá a seguir. A construção do enunciado retoma mais uma vez a idéia de heterogêneo, neste caso a partir de um termo que articula dentro de si a composição de pelo menos outros três gêneros. Desta forma, o espectador segue a narrativa aguardando nada menos que uma experiência repleta de oscilações, hibridismos e muito de inusitado. Em um exemplo radical, a personagem Edivaldo Lobo é introduzida por uma vinheta narrada por uma voz over masculina: "Este é Edivaldo Lobo. Um homem cínico. Calculista. Um trambiqueiro inveterado. Capaz das maiores trapaças. Personagem vivido espetacularmente por Wilson Ribeiro". O procedimento é completamente isolado na obra e ainda apresenta toques do gênero de horror, como a trilha sonora e o grafismo com fontes características, no qual lê-se: "O GRILEIRO DE JALES".

A profusão de tramas e formas estimulada pelo anúncio precoce e escancarado - "Tragicomédia de Aventuras" - é levada a tal ponto que não se pode negar que haja algo de excessivo no filme. Há tragédias em quase todas as sequências, assim como comédias e aventuras. Estabelecer desde o início as expectativas de leitura para a obra a partir da apresentação de uma cartela que racionaliza a experiência em direção ao exagero, é como se o cineasta estivesse sempre a dizer: "Olhem! O excesso é programado!". Nessa operação Reichenbach põe em curto-circuito a noção de normatividade dos gêneros fílmicos. Em um determinado gênero, o espectador detém conhecimento prévio de um vasto conjunto de fórmulas e deseja ser conduzido na maior parte do tempo por estes caminhos bem-conhecidos até ser surpreendido por alguma sutil inovação. Em Lilian M (Relatório Confidencial) a invenção é a regra!

Há de se fazer reverberar novamente a questão das molduras, que determinariam os limites para o desenvolvimento da narrativa, por mais excessiva que seja. Ao expor os "limites desses limites", Reichenbach excede e ao mesmo tempo esvazia as convenções do cinema narrativo-comercial. Por consequência, percebemos um certo distanciamento que recobre toda narrativa. As comédias nunca são tão hilárias, nem as tragédias tão tristes. O relatório confidencial de uma mulher que já foi amante e prostituta poderia fazer alguém esperar passagens picantes mas - salvo uma exceção (sempre há uma exceção!) garantida por primeiríssimos planos preenchidos pela nudez de Lilian e Chico, seu namorado fora-da-lei, ao som de Elvis Costello -não há erotismo nas referências às relações sexuais.

Em Lilian M (Relatório Confidencial) Reichenbach prolonga esse interesse pelo esvaziamento para a questão dos corpos em cena. Cenas de tédio e/ou indiferença são comuns, especialmente com a protagonista. Lilian M. está um tanto aborrecida com a entrevista, Maria não se entusiasma ao deixar a roça para viver uma aventura na cidade ao lado do caixeiro viajante e Lilian suporta sessões de eletrochoque em troca de dinheiro. Há uma cena que, nesse sentido, merece ser analisada. Lilian e seu primeiro parceiro na capital, um homem rico chamado Braga, conversam em um restaurante à beira de uma represa. O tango que havia começado na sequência anterior prossegue, lançando uma nota irônica devido à ausência de paixão em cena. A representação do momento de lazer dos amantes é matizada pela frieza e solidão.

Braga inicia a sequência isolado por um primeiro plano enquanto discursa sobre o fardo de ser um industrial poderoso. Um zoom out abre o quadro revelando Lilian, que o observa sem reação alguma. Na cena seguinte Braga está em pé, de frente para a câmera e segue falando, para o enfado de Lilian que permanece imóvel de costas para o acompanhante. Há uma promessa de quebra dessa frieza quando Braga a convida para dançar um bolero, mas a cena é interrompida antes do primeiro passo. No final da sequência, Lilian finge escutar o monólogo interminável de Braga, enquanto ele lamenta-se da péssima relação com o filho, que é bailarino. Então, o plano conjunto da conversa é invadido por um sexteto de bailarinos ao som extradiegético de Black-Eyed Blues de Joe Cocker, em um dos momentos mais memoráveis do filme.

Tango, bolero e blues são utilizados em um gesto persistente de quebrar o gelo entre as personagens, mas apenas acentuam a ausência de erotismo. Tal persistência faz-se notar também na decupagem, com constantes mudanças de ponto de vista da câmera sem que haja progressão dramática correspondente. É como se, apesar dos esforços ao alcance do filme, fosse impossível quebrar a alienação de um casal naquela situação dramática, ou seja, encontrar um plano ou uma música que os tornassem intimamente conectados.

É possível encontrar o esvaziamento dos corpos e da mise-en-scène em outros pontos da obra como, por exemplo, na cena do sexo entre Lilian e Zé, seu marido camponês, primeiro e último amante na narrativa do filme. No entanto, para evocar um contraponto, uma sequência destaca-se na direção contrária, na qual o vigor físico da protagonista é colocado à prova pela primeira vez. Hans Hartmann, um industrial alemão com fetiche por tortura, e seu assistente promovem uma "caça à Lilian" dentro da suntuosa fazenda do milionário. Munidos de uma câmera fotográfica e de uma pistola, detonam uma surpreendente perseguição contra a protagonista, atirando por diversão e tomando fotos por perversão. Há uma forte iconicidade fálica nessa sequência, representada pela pistola e pela objetiva da câmera. Talvez seja o ponto de máxima concentração - plástica e dramática - de uma questão essencial do filme: a exploração fetichista de Lilian por seus amantes e mantenedores.

Na trilha sonora os ruídos de rajadas de metralhadoras e bomba, embora a dupla possua apenas uma pistola, cumprem a função de hiperbolizar a tal exploração. Durante a caçada, há um efeito plástico interessante quando a imagem de Lilian congela em um close-up, também procedimento isolado na obra, abrindo espaço para a leitura de que nenhum esforço de fuga será o bastante para vencer a tirania desses homens e seu capital.

É possível observar a convergência entre a forma e o conteúdo do filme na crítica às convenções burguesas sobre a normatividade dos gêneros, seja sobre os sexos ou o cinema, ora explícita pela caricatura canhestra do tipos masculinos, ora pelo uso subversivos da heterogeneidade formal.