Fotografia de um prédio deadente na cidade

LEMBRANÇAS

CIDADES VISÍVEIS

yann beauvais

Tradução: Eduardo Liron

Durante muito tempo eu me perguntei se o ato de filmar as cidades faz parte de uma atividade cinematográfica particular. Essas cidades filmadas, as quais eu habitei, percorri ou atravessei, são o reflexo de uma experiência sensível complexa. De fato, como a maioria dos cineastas incluídos nesta série, a relação que nós mantemos com o espaço reflete algo bastante de essencial acerca de nosso modo de ser no mundo, de habitar o mundo naquele dado momento; e essa, para além da multiplicidade de nossas escrituras. A cidade, no cinema, não é jamais um espaço anônimo. Ela é sempre a afirmaçnao de uma subjetividade pelo olhar lançado sobre este espaço público/privado assim como para seu tratamento.

Estar no mundo é acima de tudo mediar um espaço pessoal vis à vis a um espaço público. Esta medida se encontra na relação que nós mantemos com a história, tanto a nossa quanto aquela dos lugares e dos espaços que nos constituem tanto quanto nós os produzimos. O cinema acaba sendo, a este respeito, uma ferramenta privilegiada na formação desses espaços mentais (privados e públicos).

Filmar o espaço é um pouco como parar o tempo, ou mais exatamente, tentar capturar o flúxo de um rio. É neste sentido que os jardins de Tivoli filmados por Kenneth Anger em seu Eaux d’artifices (1953) são exemplares. Este jardim de água brinca com diferentes aspectos orgânicos à fim de solidificar a água em esculturas fervilhantes, estremecentes ao vento e à corrida louca de uma quimera rodopiante. O sólido se torna líquido antes de se afirmar como poeira luminosa azul.

Enquanto filmamamos as cidades, somos tomados por imagens parasitas, por fantasmas que vêm interferir ou tomar posse do espaço que representamos. Não devemos pensar que estas imagens fantasmas sejam unicamente negativas, isto seria um mal entendido; elas são às vezes reminescências da infância ou da maturidade e que só experimentamos através delas. Basta contemplarmos a Nova Iorque de Jonas Mekas (Walden) na qual a natureza e a infância são tão presentes que acabamos nos pergutando, por vezes, se se trata realmente de Nova Iorque ou de um pedaço da Lituânia que caiu de paraquedas em Manhattan. Esta representação da cidade é paradoxal uma vez que ela acontece no momento em que a aderência, que é uma crença, a esta cidade é a mais frágil, quase suspensa ao sopro de uma alma.

Não há espaços virgens que não tenham sido marcadps por clichês e diferentes olhares dos quais somos mais ou menos conscientes.

Outras vezes, os lugares são tão cheios de história que é impossível não vê-la, os campos de concentração são um dos exemplos mais impressionantes que descrevem Noite e Neblina, de Alain Resnais ou Cooperation of Parts (1987) de Daniel Eisenberg. As cicatrizes do corpo de Alain Fleisher são legíveis também no caos da cidade.

Contudo, essas cicatrizes não pertencem senão ao passado; é isto que nos mostra tão bem Alain Resnais, Jean Luc Godard, Jean Marie Straub, ou Chantal Ackerman em alguns de seus filmes.

As espessuras da imagem cortam as cidades conforme arquiteturas fugazes; na sequência de travellings se encaixam uns aos outros em Chicago loops (1976) de James Benning, Non, je ne regrette rien (1984) de Gustav Deutsch, Seeing in the Rain (1981) de Chris Gallager ou Nichschennichsehen (1993) de Jan Peters ou Hightway (1958) d’Hilary Harris. Esta síncope espacial se opões a um outro uso dos travelings que extende o tempo ao limite de sua dissolução, como podemos experimentar em Eureka (1974) de Ernie Gehr ou Chicago (1996) de Jurgen Reble. A cidade se torna o material de emulsão.

As cidades da Italia ou mesmo de Nova Iorque desfrutam de uma aura incrível por diversos cineastas. Mas, ao filmar essas cidades, cada cineasta acaba por se por ao comando, de uma maneira ou de outra (por conhecimento de causa ou por ignorância), da história da representação dessas cidades através do meio utilizado. Assim à sombra de cada nova visão podem surgir outras, que nos levam a outros litorais, rostos ou paisagens. A evocação que não é uma citação torna-se objeto de predileção dos cineastas em busca de um tempo, de um personagem desaparecido. Pensamos aqui dobretudo em The Fallen World (1983) de Majorie Keller e L’appartement de la rue de Vaugirard (1975) Christian Boltanski. Da mesma forma o uso da retomada de um padrão: a ponte deve ser entendida como uma homenagem a um mestre; é neste sentido que se deve compreender o filme de Jakobois sobre as pontes de Asnières, uma homenagem a Van Gogh.

Do mesmo modo, a visão impressionista de Paul Strand em Manhatta (1921) se reencontre em torno de alguns planos do filme de Chantal Ackerman para além das transformações sucessivas de Manhattan. Fascinaçnao pelo Meat Market, pelo desembarcadouro de Staten Island Ferry.

Os lugares já filmados são revisitados, eu refilmei, em Amoroso (1983) os jardins de Tivoli, mas para inscrever uma diferença adicional aos jogos de águas e de materiais que se dão pelos tons vermelhos e visões de Roma evocadas nos Homes Movie - Rome, Florence, Venise (1965) de Taylor Mead.

Do mesmo modo, o espaço filmado pode nos permitir rememorar a ficção da representação, ou seja, sua interpretação, que nesse sentido se torna o traço de um além que nos convoca simultaneamente a confrontar as experiências no momento em que uma delas acontece; é assim que Son nom de Venise dans Calcutta désert (1976), de Marguerite Duras, trabalha no deserto de Calcutá; como por trás da decoração de India Song. O segundo filme permitindo que a memória surja em sua fragilidade brilhante. Enquanto evento puro, o filme dispões de nossa memória afim de fazer eclodir em meio ao palácio em ruínas o que significa estar sob a influência de um amor apaixonado. O desamparo e o abandono se inscrevem nos lugares abandonados, um terreno tanto para descifrar quanto para desbravar.

A cidade como túmulo da imagem propõe a concreção das superfícies nas quais os primeiros planos florescem ao momento de sua dissolução. Os cemitérios como lugar do tempo suspenso; permitindo evocar mais facilmente o passado, o distante. Eles são também espaços urbanos particularmente fecundos para a errança da imaginação. Provedores de emoção, eles são catalizadores de imagem, haja visto The Dead (USA) de Stan Brakhage ou o filme que Majorie Keller e os do grupo MétroBarbes Rochechouart réalisaram no cemitério do Père Lachaise.

Na esquina de uma rua surgiu a história, tanto nos vestígios de menumentos deteriorados, conservados ou restaurados quanto por sua disaparição. Aqui os filmes Premonition (1995) de Dominic Angerame, Les Antiquités de Rome (1989) de Jean Claude Rousseau, Verlassen; Verloren Einsam, Kalt (Missa Solemnis) (1990) de Klaus Wyborny são exemplares de tais desaparições e do mal-estar que elas desencadeiam em nosso ser no mundo. Mas estes lugares são inseparáveis dos eventos que neles ocorrem.

Eventos tão banais e cotidianos quanto históricos, como nos filmes de Alain Fleischer. Este fermento da história é tal que certas cidades são assombrada pela memória de imagens filmadas que terminam por lhes significar. A cidade roubada por suas imagens tornam-se fonte de enganos e de erros, na busca por um espaço neutro.

Mas nós não precisamos ir longe, é suficiente filmar um qurto, um apartamento, um lugar em uma cidade qualquer para que se manifeste uma alteridade indizível, o surgimento de um outro tempo que eclode sobre a superfície da tela. Estou pensando em One Second in Montreal (1969) de Michael Snow, Spacy (1980) de Takasha Ito, Maas Observation (1997) de Karel Doing e Gregg Pope.

A errância tanto dos cineastas quanto dos espectadores que não vêem as cidades senão através do amontoamento de imagens destas mesmas cidades; De Maasbruggen (1938) de Paul Schuitema, U. S. S. A (1987) de Vivian Ostrovsky e Dreaming in Yellow While Searching Carpaccio's Gold (1990) de Andrea Kirsch funcionam como catalizadores; eles repercutem planos, sequências.

A cidade colapsa. A memória nos prega peças e nos faz percorrer cidades nas quais nós estemos, ao mesmo tempo em que não iremos a elas jamais, mas que conhecemos tão bem como no caso de Wei weit weg (1995) de Bjorn Melhus. Por seu lado, os cineastas constróem cidades que estamos sempre prontos a percorer de olhos fechados, seja por deleite ou medo. As mais belas viagens não são aquelas feitas no local, sob a imagem de um turista sem bagagem, para único guia Joseph Cornell.

E portanto eu jamais cessarei de filmar certas cidades, Nova Iorque, Paris ou Veneza; para as descobrir e me perder incansávelmente. Relacionar, trazendo a cidade que sempre de volta ao momento passado ainda vivenciado.