Fotografia de um prédio deadente na cidade

Fotografia.exe

O arquivo que nos movimenta

Wellington Sacchi

O ato de guardar e retomar algo, ideia intimamente ligada aos arquivos, sempre esteve presente em nossas ações e atitudes, sejam elas científicas, filosóficas, artísticas, míticas ou religiosas. Há algumas décadas, através da informatização, chegamos ao refinamento tecnológico na elaboração de nossos arquivos e hoje com o mundo binário da informática, são condensados e guardados em mídias ou memórias artificiais.

Vistos como virtuais por não serem palpáveis, esses arquivos não só armazenam conteúdo, como também funcionam com um raciocínio próprio. Não vamos nos ater ao complexo mundo dos sistemas informatizados, no entanto, abordaremos um exemplo de um tipo de arquivo muito conhecido na informática, denominado por seu tipo de extensão .exe, que é chamado auto executável.

Arquivos .exe trazem em si uma lógica auto executável com vida própria e quando ativados, desencadeiam uma série de diversificadas ações, dependendo do sistema atual que está sendo executado. Entre os usuários de informática é sabido, que arquivos .exe de origem duvidosa são um risco, uma vez que podem causar danos irreversíveis ao sistema do usuário que o executou pela possibilidade de conter um uma lógica específica danosa, vinda de alguém que pretende invadir ou danificar este sistema. Essa vida própria desses arquivos nos leva a compreender que esses sistemas têm em si um raciocínio intrínseco capaz de disparar uma série de logicas pertinentes ao sistema que ele vier a ocupar. O arquivo .exe passa, portanto, a pensar sozinho, independentemente de seu criador, mas de forma dependente do sistema que será executado e condicionado a linguagem deste último e à comunicação que será usada para sua execução. Deparamo-nos então, com arquivos que raciocinam, que “pensam”.

Inteligência artificial, ou seriam pinturas rupestres, totens sagrados, receitas alquímicas, pergaminhos secretos, livros resguardados e uma série de outros arquivos?

Presente, portanto, nas diversas áreas das atividades humanas, o arquivo também conta com uma característica inerente à sua existência, denominado aqui de nomadismo temporal, singular à sua própria expressão. Segundo Claude Lévi-Strauss, "os arquivos são o ser encarnado da ‘acontecementalidade’". O acontecimento por si só se desloca no tempo através de passado presente e futuro, e os arquivos conseguem condensar toda essa carga temporal em sua forma concreta, a qual será expressa, seja através de um totem ou de um arquivo digital. O arquivo passa, então, a personificar o acontecimento, ou melhor, ele encarna em seu suporte concreto, não só um momento temporal, mas uma acontecementalidade. Para compreendermos essa transitoriedade do tempo, devemos analisar como os arquivos comportam-se em seu estado passivo e ativo.

No estado passivo, temos o arquivo em seu repouso, quando se encontra guardado ou até mesmo não visto, não requisitado. Assim, como a bela adormecida, ele “adormece” guardado, mas, aguardando o “beijo de seu príncipe”, capaz de fazê-lo emergir do passado, acordando todo um tempo deste castelo chamado memória.

Enquanto estava guardado, o arquivo encontrava-se passivo, mas ao ser requisitado ele renasce, tornando-se ativo. É no momento do despertar, no exato momento do “beijo”, quando este arquivo se torna presente e começa um caminho na temporalidade aqui mencionada.

Mas para o arquivo instaurar seu trânsito no tempo, ora sendo passado quando “adormecido”, ora sendo presente quando acordado, é necessário que ele caminhe também por sobre o futuro, o que é possível através do desencadeamento das consequências de sua ativação, pois nesse ponto ele suscita uma série de comunicações. Dessa forma, além de provocar o futuro, o arquivo movimenta o usuário por outras dimensões através de novas projeções causadas por essas últimas consequências.

Mesmo adormecido, o arquivo guardado em sua passividade gera chamados pontuais de uma comunicação silenciosa, emitida ao léu, onde “diz”: estou aqui, pronto para renascer; tendo a certeza de que o herói (o príncipe) virá “pronto” para despertá-lo.

Briar Rose foi posta para dormir por uma bruxa má. E não apenas ela, mas todo o seu mundo, adormeceu; mas, por fim, “após muitos anos”, um príncipe a despertou. ”O rei e a rainha, que acabavam de chegar e entravam no vestíbulo, adormeceram, e, com eles, todo o reino. Os cavalos dormiam nos estábulos, os cães, nos canis, os pombos, no telhado, as moscas, na parede. O fogo que ardia na lareira aumentou e se extinguiu e o assado parou de exalar. E o cozinheiro, que estava prestes a puxar as orelhas do auxiliar por que havia esquecido de algo, deixou-o ir e adormeceu. E o vento parou e nenhuma folha se mexia nas árvores. E em torno do palácio, começou a crescer um espinheiro, que cada ano aumentava e que terminou por cobrir todo o reino. Ele se elevou acima do castelo, de modo que nada mais se via, nem mesmo o cata-vento no telhado”

Nesta comunicação silenciosa, emitida pelo arquivo, reside a chave para um desdobramento, ao qual podemos chegar, conhecendo ainda mais o processo pensante dos arquivos.

Tomemos por base um arquivo dentre nós, amplamente usado, difundido e conclamado: a fotografia. Sendo mediada por papel, outros suportes ou exposição digital, ela torna-se um arquivo. Para maior clareza e simplicidade no reconhecimento da fotografia como um arquivo, basta buscarmos algumas destas fotos em caixas, baús ou, até mesmo, na memória de um dispositivo digital como um computador para iniciarmos a percepção deste, o qual estava “morto”, ou melhor “adormecido”. Agora, uma vez ativada, essa imagem brilha em nosso olhar, provocando sentimentos diversos causados por aquela comunicação que se encontrava silenciosa.

Mas de onde vem essa comunicação gerada por uma simples tela ou um pedaço de papel fotográfico?

Inicialmente vamos considerar a fotografia como um processo já conhecido como fotográfico. Neste processo, temos um objeto, uma câmera, um operador (fotógrafo), uma mídia (suporte físico, papel ou dados) e um observador. No início do ato fotográfico, começa então, um processo comunicacional infindo enquanto ativado, ou seja, eterno em quanto dure. O objeto é captado pela câmera e, então, começa sua história, gerando assim, uma emissão, uma carga de ideias, formas, pensamentos, sentimentos e demais alusões às quais perdurarão no tempo a partir desse momento. Concomitantemente, o operador e fotógrafo exerceram sua edição, seu recorte do objeto, usando ou não, toda a carga de possibilidades de comunicar que este (objeto) possui. Ele, o fotógrafo, impregna no processo outra carga de igual ou desigual tamanho à do objeto, no entanto, estas cargas serão combinadas e recombinadas entre si, criando uma lógica desconhecida e impossível de ser matematizada, uma vez que essa recombinação acontece também, com os diversos processos midiáticos possíveis para a concretização do arquivo. E assim, como a mesma água se amolda a um pequeno dedal de costura ou em um lago entre escarpas de montanhas, essa impossibilidade lógica se desmancha ou se formula a um simples olhar do observador, o qual ativa aquele arquivo fotográfico, completando instantaneamente uma combinação (o fotográfico) que será recombinada em diversos outros momentos do tempo, através de uma rede de possibilidades concernentes às particularidades daquele que observa a imagem. Afim de trazer à tona toda essa conjugação supracitada podemos observar um arquivo fotográfico trazido aqui (fotografia 1).

Foto 1: Autor - Wellington Sacchi . Há algo que nos incomoda, movimenta ou alivia.

Fixar nosso olhar sobre esta imagem, por alguns instantes, pode significar a captação de vasta carga de comunicações que ela nos provoca. Apesar de um arquivo da esfera do particular, a fotografia (arquivo) também tem algo público, uma vez que o motivo nela exposto é de reconhecimento comum a todas as pessoas, diferente de outro exemplo que será citado mas adiante o qual tem um caráter intrinsicamente mais pessoal. Nessa imagem (Foto 1), inevitavelmente, temos uma série de reações advindas daquela emissão de comunicações que ela nos lança e essa força comunicacional nos conduz a uma série de caminhos, os quais, dependendo do observador podem ser apavorantes, sublimes, desconfortantes, instigadores nauseantes e denunciadores. O que aconteceu aqui, não é a leitura de sinais ou ícones, que possam conter a imagem, que a fará “agir”, mas sim, há nesta fotografia, uma forma que pensa e toda vez que você a recordar, o arquivo dessa imagem – olhando novamente para ela – neste exato momento, da mesma forma ela estará lhe observando, pulsando outros significados.

A fotografia torna-se então um arquivo auto executável, uma vez que contém uma lógica tramada em uma rede comunicacional sempre completada por aquele que o observa. Exatamente nesse encontro entre observador e arquivo fotográfico, no exato momento do “beijo”, é que o pensamento da imagem se exprime, superando uma lógica fria dos signos contidos ali, deixados muitas vezes, pelo fotógrafo tal qual a bruxa má. E Briar Rose, a adormecida, espera pelo beijo do príncipe herói, onde acordado, acordará todo um reino do qual seu príncipe fará parte. E como resultante de um pensamento expresso, finda-se todo aquele espinheiro, descortinado assim um castelo de memórias.

Ainda sobre Briar Rose... “ela abriu os olhos, despertou e olhou com amizade. Juntos desceram a escada, e o rei, e a rainha e toda a corte acordaram e todos se entreolharam, com estupefação. E os cavalos da corte levantaram e se sacudiram; os cães de caça saltaram e abanaram a calda; os pombos do teto retiraram as cabecinhas de baixo das asas; olharam a sua volta e voaram pelo campo; as moscas que se achavam na parede voltaram a andar; o fogo se reavivou na cozinha, aumentou e fez o jantar; o assado voltou a dourar; o cozinheiro deu um peteleco no ouvido do ajudante que o fez cambalear; e a ama terminou de deplumar a galinha.”

Para compreendermos uma face dessa emissão do pensamento da imagem, necessitamos considerar dentro do processo da acontecementalidade encarnado pelo arquivo que há uma rede, um sistema heurístico intimamente ligado àquele, como já mencionado, o qual irá despertar a imagem. Assim podemos visionar que não importa a morfose do arquivo em seu conteúdo ou suporte; é necessário que ele exista para tornar-se – quando despertado por seu herói, aquele príncipe específico que beijou a bela adormecida– um tempo descoberto.

Neste ponto, deparamo-nos com uma dinâmica, suscitada por esta conjunção dos participantes desse processo fotográfico. Este arquivo que nos movimenta, assim o faz, não somente por meio do tempo, mas também em dimensões diversificadas, com pertinência denominadas como uma saga do herói continuada. Neste ponto, nada mais claro que redescobrir um arquivo fotográfico trazido de uma fotografia familiar colhida dos álbuns do fundo do armário da casa dos pais para compreender que a carga pensante desse arquivo nos faz movimentar como nômades do tempo e nos coloca em dimensões inexplicáveis.

FOTO 2: Autor Desconhecido . O quarto integrante do time, em pé da direita para esquerda é o referido pai do autor deste artigo.

Aqui nessa imagem (foto 2), do time de futebol, onde se destaca a figura do pai, é que brota e jorra simultaneamente as idas e vindas provocadas por essa imagem, a qual, agora é fundamentalmente pessoal. Por esse caráter, da personalidade, esse arquivo redescoberto da imagem do time de futebol, não terá para o leitor a mesma carga tocante que a imagem anterior, da cabeça do cavalo. Já no caso do “herói”, o filho deste jogador de futebol, que despertou esse arquivo e evocou essa imagem, terá seu sensorial explodido em todas as direções, causando novas dimensões sensitivas, as quais, combinadas aos diversos pontos temporais que estes conjuntos percorrerão, formarão “galáxias comunicacionais” tecendo um universo inigualável perante qualquer outro observador.

Além do nomadismo temporal, o observador (nosso herói) desperta o arquivo e é transportado não só para um passado, uma historicidade ou uma memória, mas a uma condição imagética própria que existe dentro de si independentemente do tempo e espaço. Algo secreto, dotado de uma individualidade, pleonasticamente, impar. Ninguém conhece os anseios particulares do herói, apenas o motivo de sua missão; que é despertar a adormecida. Isso faz o observador caminhar por lócus extra temporais. Assim, o observador tem uma saga heroica a cumprir, a cada despertar do arquivo e, portanto, uma saga continuada, uma que aos arquivos cabe uma de suas características básicas: a de ser guardado e de voltar ao seu estado inicial, qual seja a dormência. No caso da fotografia, é como se o fotógrafo fosse além da bruxa má e fizesse aquele momento adormecer para sempre. Ao observador, nosso herói, cabe constantemente cumprir uma saga de forma continuada e despertar sempre a imagem guardada; a princesa e bela adormecida Briar Rose.

Este pensar contido na imagem, aqui fotografia, não está impregnado exclusivamente na mídia, pois ele transita no tempo, entre passado, presente e futuro nas recombinações já citadas. Dessa maneira, a imagem está intrinsecamente ligada a um processo comunicacional do qual basta a nós decifrarmos quem dispara a primeira mensagem, perguntando: “É a imagem que nos ´toca´, ou nós que a ´tocamos´”? Toda essa carga é aparentemente impregnada na mídia (papel fotográfico, dados ou outros suportes), no entanto essa comunicação palpita nas distâncias temporais do processo fotográfico, sendo, tanto objeto, mídia, fotógrafo como o observador, meros coadjuvantes para um bem maior: o pensar que existe na imagem deste arquivo auto executável.

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