Fotografia de um prédio deadente na cidade

SOBRE ESCOMBROS E BERINGELAS

Lívia Piccolo

Palmira, 2008

Estou na cidade de Palmira, na Síria. Palmira fica no centro do país, a 215 km a noroeste da capital Damasco. O som da palavra ​palmira me lembra palmito. Tenho um estômago que pensa tortuosamente. Minha bisavó Julieta nasceu em Damasco e passou a infância na Síria. Convivi com ela durante mágicos e surpreendentes dezesseis anos. Foram muitas as refeições de domingo, as conversas, a observação silenciosa do seu rosto quando assistia a novela das oito sentada na poltrona marrom da sala. E sempre a deliciosa alegria ao vê-­la recheando dezenas de abobrinhas e beringelas com arroz e carne, sempre saborosos. Foi enorme a curiosidade sobre a beleza das jóias e bijuterias guardadas nas gavetas do criado mudo. Nunca conheci ninguém que tivesse convivido dezesseis anos com uma bisavó, e este é um aspecto especialmente marcante na minha história de vida até aqui. Considero o conjunto de lembranças com minha bisavó como um dos meus patrimônios imateriais. Já Palmira é uma cidade considerada patrimônio histórico pela UNESCO, repleta de monumentos a céu aberto. Materialidade pura. Foi um dos mais importantes centro da Antiguidade e é referida por muitos como a ​Pérola do Deserto. Assim como as memórias que tenho da minha bisavó Julieta, Palmira é linda. Em 2008, quando estou a passeio na cidade, não penso sobre a fragilidade das instituições multilaterais. Percorrendo as colunas e sentindo prazerosamente na pele a aridez dos ventos que carregam areia, penso sobre o absurdo que foram as Guerras Cruzadas medievais, denominadas Guerras Santas. Considerar os árabes como bárbaros, quando foram eles que inventaram a álgebra? Tão grotesco quanto o fanatismo religioso dos dias de hoje. As inversões (e invenções) da história, essa que já ostentou H maiúsculo. Penso sobre as noções de civilização, que me parecem um tanto vagas. Estou na cidade de Palmira, e embora meu pensamento seja crítico, é leve como algodão. Meus sentidos estão encantados pela cidade e vencem qualquer estratégia do pensamento. Para mim não há exercício mental que ganhe da sensualidade de uma cidade que data de milênios antes de Cristo. Fecho os olhos e sinto o cheiro do lugar misturado ao das beringelas da minha infância. Em 2008 o Estado Islâmico não controla a cidade e não há Guerra Civil em Palmira. Há camelos, guias turísticos e visitantes do mundo inteiro. Entre eles estou eu, que ingenuamente me deixo emocionar pela beleza de Palmira. Enquanto minha fome descansa, me deixo inspirar por paisagens que provavelmente nunca mais verei na vida.

São Paulo, 2015

Nem eu nem mais ninguém verá Palmira.

Minha bisavó Julieta amorosamente alimentava a família com beringelas e abobrinhas recheadas com arroz e carne moída. Salivando novamente com a lembrança, esqueço a tristeza dos destroços de Palmira, escrevo este texto e decido pesquisar sobre o futuro das cidades. Me pergunto: como se alimentam as cidades? Preciso encarar o fato de que o futuro da humanidade depende das cidades, e isso soa amargo.

Estima­sse que em em 2050 haverá o dobro de pessoas morando nas cidades.

O planeta tem um bilhão de obesos e um bilhão de famintos.

E 80% do comércio global de alimentos está nas mãos de cinco corporações multinacionais.

Nada disso faz muito sentido.

Obviamente, eu me pergunto: como chegamos até aqui? É preciso recuar violentamente no tempo, talvez até o início da cidade de Palmira, documentada pela primeira vez no início do segundo milênio a.C., para compreender alguns fatos históricos básicos. As cidades surgiram junto com a agricultura, e não por acaso. Foi a descoberta dos grãos, fonte de alimento segura e durável, que permitiu os assentamentos permanentes. As cidades, na época, eram pequenas e compactas, com o cultivo dos grãos ao redor e o templo localizado em um lugar central. Nos pequenos assentamentos urbanos que datam de 2000 a.C., alimentação e espiritualidade estavam ligadas, pois eram os templos que organizavam a colheita. Os grãos permaneciam dentro dos templos para serem oferecidos aos deuses. E, depois do ritual, eram direcionados às bocas humanas.

As cidades cresceram, a fome por carne também. O alimento passou a ser vendido nos espaços públicos, desvinculados do exercício espiritual. Nas cidades construídas antes do período industrial os alimentos eram vendidos nos mercados. Bois, ovelhas e porcos podiam ser expostos logo abaixo da janela da casa de um morador comum. Com a invenção dos trens, as cidades se emanciparam e os animais começaram a ser transportados pelos vagões.

Foi então que ocorreu uma importante mudança cultural e econômica: os animais passaram a ser criados e alimentados fora das cidades. Passam-­se os anos e temos uma gigantesca área no Mato Grosso do Sul, no Brasil, dominado pela soja e pelas máquinas. Mas agora os grãos alimentam os animais. E os animais viram os bifes higienizados nas prateleiras dos supermercados.

Há ligação entre a destruição dos templos religiosos de Palmira, o futuro das cidades, hambúrgueres e a relação brutalizada que temos com a comida, hoje em dia? Provavelmente, sim. Nos supermercados olhamos as embalagens e lemos em voz alta nomes de substâncias químicas que soam como o mais bizarro idioma estrangeiro. Não sabemos de onde vêm aquilo que colocamos para dentro do corpo. Engolimos o conteúdo de pacotinhos coloridos e corremos para o médico e para a academia. Não se fala sobre a relação entre açúcar e cocaína.

A relação com a comida modela, também, a relação com a cidade.

Estamos distante dos nossos ancestrais que inventaram a agricultura. Não ritualizamos a comida. Eu não sei fazer as beringelas e abobrinhas da minha bisavó, e adio infinitamente o dia em que vou aprender a fazê­-las.

Quero terminar o texto, mas não sei como. Uma frase se ilumina na minha cabeça, não é minha, é de Macbeth, personagem famoso de Shakespeare. Revejo as notícias da destruição de Palmira e finalmente concordo com ele quando diz que ​**"a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria."** E comida, eu acrescento, profanamente.


*As informações históricas foram pesquisadas no vídeo ​How Food Shapes Our Cities, de Carolyn Steel, disponível aqui: ​https://www.ted.com/playlists/29/our_future_in_cities