
REVOLUCIONAR A POSIÇÃO DO ESPECTADOR
Jordi Carmona Hurtado
Nossa finalidade aqui é apenas analisar um pouco, começar a descrever ao menos, o que seria uma posição revolucionária de espectador, ou o que quer dizer revolucionar a posição do espectador acolhendo nas formas da arte a realidade da injustiça ou da revolta. Transformar ou revolucionar a posição do espectador não consiste em mobilizá-lo para tal luta social ou tal ajuda humanitária, senão em primeiro lugar em desmobilizá-lo em relação à sua posição habitual de espectador-ator, a posição que a comunicação oficial e sua ocupação social constroem dia após dia. Então, a arte teria uma função política limitada e modesta: não se trata de mudar o espectador passivo da injustiça em ator ativo da revolução, mas de deslocar a posição mesma do espectador, revolucionar essa posição; trata-se de um trabalho interno ao ser espectador. Um trabalho de medir a distância e a proximidade que nos faria sentir tal injustiça ou tal revolta. Em lugar da comunicação abstrata e reificada da informação, a arte política seria uma forma de comunicação concreta, singular, cuja finalidade, para parafrasear Lenin, é a de construir uma posição de espectador concreta para o espetáculo de uma situação de injustiça ou de revolta concreta.
Quereríamos analisar apenas dois exemplos nessa direção. O primeiro teria a ver com o trabalho da arte em relação a uma realidade de injustiça: é o que foi publicado na forma de livro em 1941 com o título de Let us now praise famous men
Mas será que em nossas sociedades a miséria já não está "estetizada", e de uma maneira bem determinada? No sentido de que os pobres são seres dignos de comiseração, que precisam da nossa caridade no melhor dos sentidos, ou que apenas merecem nosso desprezo no pior. Eis a "estética" da comunicação habitual da pobreza: é o imediato da pobreza, o que transmitem sem cessar sobre ela os meios de informação, o que reproduz um certo consenso de base que faz funcionar corretamente a sociedade desigualitária e o que delimita nossa posição de espectador sobre ela. O espetáculo da pobreza seria tão pobre que é melhor nem olhar para ela: no máximo, dar uma moedinha ou uma ajuda social sem se demorar na contemplação. Mas justamente, Evans e Agee mostram que essa pobreza, quando dirigirmos nosso olhar, nossos pensamentos, nossos desejos, nossos sentimentos e toda nossa atenção para ela é de uma riqueza infinita, na qual corremos o risco de nos perder completamente, como no absoluto schellinginano ou na noite de Novalis. Só que essa riqueza da pobreza é de uma beleza que dói, de uma beleza no limite do terrível, como a do anjo das elegias de Rilke. Eu acredito que o que sentiram Evans e Agee, a realidade do mundo que tocaram na sua temporada convivendo com aqueles fazendeiros de Alabama, é justamente a coincidência ou a sobreposição de uma beleza infinita e de uma injustiça infinita. E a questão é como comunicar isso: certamente um artigo jornalístico sociologizante não o vai conseguir. Mas é essa a questão: não o que fazer diante disso, pois as formas da ação são sempre indeterminadas nessa generalidade, mas, antes, como nos colocar diante disso, como enxergar, como focar, como dar uma forma que se corresponda com esse conteúdo concreto da coincidência do infinito da beleza e da injustiça, ou da riqueza e da dor. O problema é como construir, enfim, uma posição de espectador à altura dessa realidade. Sendo a beleza e a injustiça infinitas, a arte tem de produzir uma restituição também infinita, para produzir uma verdadeira comunicação.
É assim que James Agee define o livro, esse conjunto de textos e de fotografias: uma experiência em comunicação humana, e não uma obra de arte, de modo nenhum uma obra de arte. Como ele escreve no texto introdutório: "E acima de tudo: em nome de Deus, não pensem que isso aqui é Arte"
Não o mundo do artista e do imaginário, mas aquele da comunicação real entre seres humanos reais: eis o que visa a obra de Agee e Evans. Nessa comunicação que quer destruir tanto a imaginação quanto o artista a câmara é o instrumento privilegiado: como escreve Agee, ela é o olho contemporâneo, "o instrumento central do nosso tempo"
Então, com que se parece a realidade, com que se parece a realidade de algumas famílias de fazendeiros pobres de Alabama? Como comunicar isso, esse peso, esse mistério, essa dignidade? Como fazer com que essa comunicação da realidade chegue à destruição da convenção da comunicação social, ao apelo à restituição infinita? O esforço em comunicação real revela também algo muito profundo sobre a arte, sobre a natureza secreta da arte, como dizíamos antes: o que nossa sociedade burguesa e segura considera como arte sempre foi na verdade esforço de comunicação humana real. Para compreender isso, só é preciso escutar uma sinfonia de Beethoven ou de Schubert, escreve Agee. Mas escutá-la de um modo determinado, a partir de um protocolo de audição muito específico. É preciso escutar essa sinfonia no volume máximo possível, o mais perto que seja tolerável do alto-falante, e se abandonar completamente a ela. Não se aproximar da música com a atitude de um espectador que julga desde a distância, mas se abandonar totalmente a ela, deixar que ela nos atravesse, que nos invada, até o limite da tolerância corporal. Não se trata de escutar a música, mas de ser essa música. Restituir a essa música o fato da sua existência real, de seu peso, de seu mistério, de sua dignidade: a beleza infinita e a dor infinita simultaneamente. Eis o que vamos ouvir então, segundo Agee: "É, para além de qualquer cálculo, selvagem e perigoso e assassino de qualquer equilíbrio na vida humana como a vida humana é; e nada pode se comparar com a violação que pratica em tudo o que está morto; nada a exceção de qualquer coisa, qualquer coisa na existência ou no sonho, percebida em qualquer lugar remotamente perto de sua verdadeira dimensão"
Eu acredito que essa tenha sido a tendência fundamental da arte política, quando tem sido praticada com seriedade: revolucionar a posição do espectador não no sentido de chamar ele para a ação, ou no sentido de fazer que ele contemple o mundo com uma perspetiva científica; mas no sentido de fazer do espectador do mundo do imaginário artístico um espectador da realidade, de fazer entrar a realidade (seu peso, seu mistério, sua dignidade) na posição do espectador. Não tanto transformar a passividade em atividade, mas abolir tanto a passividade quanto a atividade no ser mesmo. O que importa é enxergar que a arte é como a realidade é; o que importa é ser, ser espectador e ator da realidade. É uma busca ontológica quase, mais do que estética ou política no sentido habitual dessas palavras: uma busca da forma da qualidade do real.
O segundo e último exemplo que quereríamos analisar brevemente tem mais a ver não tanto com a posição da arte diante da realidade da injustiça, mas da realidade da revolta, da resistência ou da revolução. Ora, a palavra de ordem de Jean-Luc Godard em Camera Eye, sua contribuição ao filme coletivo Longe do Vietnam
O primeiro passo, como diz e mostra Godard, é deixar de lado ou não cair nas ideias, nas idéias generosas. Essas idéias generosas, de solidariedade, de amor ao próximo, de simpatia, de compaixão, são na verdade as mais perigosas, pois substituem a comunicação real entre os seres humanos por um simulacro, dissimulando aliás a situação de ausência de comunicação efetiva: entre um diretor de cinema francês e o povo vietnamita, entre um diretor de cinema francês e a classe operária francesa, entre a classe operária francesa e o povo vietnamita. Pois não há comunicação real, não há ainda revolução, mas apenas "prisões", diz Godard, prisões culturais, prisões econômicas, prisões imperialistas. É preciso não comunicar a partir de idéias, de idéias generosas, pois as idéias generosas ainda separam a forma e o conteúdo, ainda sobrepõem uma comunicação imaginária à ausência efetiva de comunicação. É preciso, em primeiro lugar, não abolir a distância, mas assumí-la: fazer com que nosso esforço de comunicação consiga medir a distância que nos separa do Vietnam. Só assim, aliás, seremos capazes de interiorizar a palavra de ordem do Che Guevara, que recomendava não ir lá ajudar o povo vietnamita, ou assinar apelos pela paz no Vietnam, mas criar um, dois, três, cem Vietnames em todos os lugares que habitamos. A questão, para comunicar o Vietnam, não é continuar invadindo o Vietnam, mesmo se o invadimos com idéias generosas e não com bombas de fragmentação, mas deixar que o Vietnam nos invada. Eis a questão, para Godard: "criar um Vietnam em nós mesmos".
No fundo, trata-se de receber as bombas, sim, sobre nossas cabeças. Expor, por exemplo, que o cineasta que queria mostrar tudo, como Vertov que queria ser o homem com a câmera, o homem que comunica sem cessar a sociedade consigo mesma, está com sua câmera no terraço de um apartamento parisiense, isolado. E mostrar que essa situação de isolamento é justa, que a Frente de Liberação Nacional teve razão em negar sua visita, por causa de sua "ideologia difusa". Eis a situação do artista que constrói Godard no seu filme, a de um ser absolutamente isolado e com um desejo absoluto de comunicação ao mesmo tempo: eis o Vientnam em nós mesmos. Um artista que não é um revolucionário, que está separado não apenas dos outros povos, mas também de seu próprio povo que não vai assistir seus filmes, e que ainda assim só quer e só luta para comunicar. Mas será que o artista não é um revolucionário? Será que apenas o revolucionário mesmo é um revolucionário? Que o artista só pode ter ideias generosas e no fundo vergonhosas sobre a revolução? Será que não há uma distância própria à revolução que o artista possa habitar?
Umas linhas atribuídas falsamente a André Breton, que o próprio Godard lê, podem nos orientar nessas perguntas: "Eu acredito na virtude absoluta de tudo o que se exerce, seja ou não de forma espontânea, no sentido da não aceitação. E não são as razões de eficácia geral, nas quais se inspira a longa paciência revolucionária, razões diante das quais eu me inclino, as que vão ensurdecer o grito que pode nos arrancar em cada minuto a assustadora desproporção entre o que é ganho e o que é perdido, entre o que é reconciliado e o que é sofrido."
Há uma distância interna à revolução também, uma distância que o artista revolucionário pode habitar: é a distância entre a paciência e o grito. Como diz Godard, os revolucionários reais não gritam, eles estão plenamente consagrados à longa paciência revolucionária, diante da qual o cineasta Godard se inclina. É certamente indigno falar das bombas quando não caem sobre nossas cabeças, transformar o sofrimento real das pessoas reais que lutam em um assunto de conversa cultural. Mas o problema é que as pessoas reais que recebem bombas reais sobre suas cabeças reais também não podem falar dessas bombas. Ou elas às vezes falam, mas essa fala é um grito mais do que um discurso, um grito que fica na margem da longa paciência revolucionária, mas que dá justamente todo o peso da realidade a essa paciência. Eis o que o novo Vertov da época da "revolução na revolução", que quer ser Godard, vai tentar transmitir: os efeitos das bombas de fragmentação, os rios envenenados, um rosto queimado pelo napalm, esses golpes, enfim, da realidade que sofre e que grita por causa desse sofrimento e cujo grito é a realidade primeira, qualitativa, o conteúdo mesmo da resistência. Esses filmes que são uma transmissão de gritos não vão ajudar em nada, talvez, ao correto entendimento da estratégia da longa paciência revolucionária. Mas estão se esforçando por transmitir e comunicar justamente a realidade, o ser que sustenta essa paciência, o conteúdo imediato da luta do povo vietnamita: o grito.
Assim, a revolução da posição do espectador que efetua Godard com seu filme tem a ver também com um esforço de apreensão da realidade, do seu peso, da sua qualidade, independentemente de qualquer estratégia revolucionária na qual poderia participar. Eis assim como ele espera "criar um Vietnam em nós mesmos", ou deixar que o Vietnam nos invada, do mesmo modo que James Agee queria que deixássemos que a sétima sinfonia de Beethoven nos invada, para podermos compreender assim um pouco da existência de algumas famílias de fazendeiros pobres do Alabama. Os dois exemplos que temos analisado vão nesse mesmo sentido. Eles mostram que a arte apenas é política quando não quer se confundir diretamente com a política, mas se esforça para habitar a distância que é própria à política, a distância entre o ator e o espectador. Essa distância é o conteúdo concreto tanto da realidade humana, do fato de ser, tanto quanto daquilo que nossas sociedades capitalistas classificam como arte, ou seja: os esforços solitários, perigosos e inauditos em comunicação humana real.