Frame do filme "Enquadro II, Tiaguinho da Redenção" do coletivo Casadalapa

O Cinema Experimental Na Era Do Capitalismo Flexível

Formas Alternativas de Produção e a Suposta Autonomia

André Meirelles Collazzi

Glauber Rocha deixou claro em suas abordagens, tanto em seus filmes como em seus textos, que sua contribuição para o cinema não estava ligada apenas à questão do tema, mas sim, sobretudo, ligada à questão da forma. Glauber Rocha buscava um cinema que pudesse dar conta da precariedade como estética e força produtiva.

O manifesto A Estética da Fome

1 representou e representa uma ruptura contra o modelo da indústria cinematográfica na tentativa de construir algo para além da cultura de massa que estava sendo imposta por todos os lados. Se de um lado tínhamos os filmes americanos, que ocupavam praticamente todas as salas de cinema e eram distribuídos por “lotes” 2 – além da forte popularização da TV no Brasil, que introduzia com força total a indústria cultural em sua programação –, por outro lado, os filmes do Cinema Novo se destacavam como resistência à essas produções ao apresentarem uma forma diferenciada de se pensar o cinema, forma essa ligada diretamente a precarização como conteúdo, como impulso criador. Composto por cineastas engajados como Cáca Diegues, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni, que reivindicavam mais atenção para o cinema independente nacional, esse movimento representou uma força que reverbera até os dias de hoje. Nos diversos escritos publicados por Glauber Rocha (1963/2003, p.173) é possível detectar essas reivindicações e o posicionamento do cinema independente da época:

O que interessa aos independentes? Três coisas já vimos: mercado desafogado, censura no Ministério da Educação, facilidades de exportação. Interessam mais: facilidades de importação da película virgem, facilidades de importação de material técnico-moderno. Nada mais. Estúdios não estão nos programas dos independentes. Por quê? O cinema moderno, desde 1945, prefere o realismo da natureza ou dos interiores autênticos.

Outro momento de grande contribuição para o cinema foram os filmes feitos pelos cineastas do Cinema Marginal, como Rogério Sganzerla, Julio Bressane, João Silvério Trevisan, Geraldo Veloso, Ozualdo Candeias. Esses cineastas, apesar de influenciados pelos cinemanovistas, se opunham ao Cinema Novo afirmando que esses, agora, representavam a ala conservadora e que, de alguma forma, estavam reproduzindo o que antes criticavam. Em entrevista ao Jornal Pasquim (1970, número 33, p. 5-11) , Sganzerla é categórico:

Eu sou contra o cinema novo, porque eu acho que depois dele ter apresentado as melhores ambições e o que tinha de melhor, de 62 a 65, atualmente ele é um movimento de elite, um movimento paternalizador, conservador, de direita. Hoje em dia, como eu estou num processo de vanguarda, eu sou um cineasta de 23 anos, eu estou querendo me ligar às expressões mais autênticas e mais profundas de uma vanguarda e eu acho que o cinema novo é exatamente anti-vanguarda. O cinema novo está fazendo exatamente aquilo que em 62 negava. O cinema novo passou ‘pro’ outro lado.

Por outro lado, Glauber Rocha chamou o cinema marginal de Udigrudi, para execrá-lo como macaqueação do underground americano (MACHADO Jr., Rubens, 2007, pp. 111-131). Essa foi uma discussão acirrada que levantou diversas questões para o cinema da época e com isso, principalmente, trouxe contribuições e reflexões.

Avançando ainda mais, chegaremos à experimentação mais radical de todas, a mais autentica e a única que conseguiu construir uma produção sem a influência da cultura de massa produzida pela TV: os superoitistas (1970 - 1981).

Com o advento da tecnologia e com câmeras cada vez mais simples de se produzir filmes “caseiros”, a experimentação em Super-8 permitiu —, apesar de pouco reconhecida até os dias de hoje, um grande avanço em termos de linguagem, pois esses superoitistas, que incluem cineastas e artistas plásticos, muitas vezes com o caráter de intervenção, se desvencilharam por completo da narrativa clássica do cinema conseguindo resultados de puro experimentalismo. Paola Ribeiro, integrante de um grupo de superoitistas, lembra que “Os filmes em 35 mm dedicam-se a construir monumentos; os 16 mm propõem-se lhes colocar questionamentos; e os Super-8 vêm para jogar merda nos monumentos” (MACHADO, 2009, p. 212).

Essas três fases do cinema (Cinema Novo, Cinema Marginal e o Movimento Superoito), se é que podemos chamar assim, foram as mais ricas em construção de linguagem, debate sobre o fazer cinematográfico e de reflexão política sobre a forma precária de produzir filmes no Brasil.

A principal fonte de financiamento no período do Cinema Novo, eram os recursos disponibilizados pela Embrafilme. A Embrafilme financiava até 49% do valor das produções, ficando a cargo dos cineastas conseguir o restante do dinheiro para a produção. Era muito comum recorrer a empréstimos bancários, empenhar um imóvel e por aí vai, como explica Glauber Rocha (1977) :

A Embrafilme funcionava como uma espécie de coprodutora dos filmes, entrando com 49% do valor do filme em uma espécie de empréstimo ao setor. A Embrafilme é uma empresa comercial e industrial, uma sociedade mista: 51% das ações são do Estado, 49% são dos produtores [...]. No cinema é empréstimo. A Embrafilme participa como coprodutora até 30% nunca com mais do que isso. O diretor se vira arranjando 70% para fazer o filme. É apenas uma empresa que produz e distribui. Não há ônus político para o produtor que vai tratar com ela, porque é melhor tratar com a Embrafilme do que com a Paramount. [...]. O meu filme custa seis milhões; a Embrafilme entrou com 30%, um milhão e oitocentos. O resto que vou ter que tomar no Banco Nacional, empenhando a minha casa, 3,5% ao mês como eu sempre fiz.

Já o cinema Marginal, por operar na lógica do filme de baixo orçamento, tinha a maioria de suas produções bancadas pelos próprios cineastas, seja via empréstimo bancário ou a venda de algum bem pessoal. Algumas produções contavam também com médios investidores de São Paulo (Ramos, 1983 p.67). Essa forma de produção serviu de contraponto aos modelos da época (Cinema Novo) e à própria estrutura da Embrafilme, porém, em menor escala, alguns cineastas do período Marginal contaram com recursos da Embrafilme, seja para uma parte da produção ou para distribuição.

No Movimento Superoito, a lógica era a do autofinanciamento e a precarização era levada às últimas consequências. O caráter de intervenção e o equipamento “amador” davam ao movimento uma liberdade nunca antes experimentada. Um exemplo é o filme Fabulário Tropical - Um Anti-Guia Turístico (Recife - 1979)

3 de Geneton Moraes Neto, ou ainda, O Rei do Cagaço (1977) de Edgar Navarro.

Muitas das questões levantadas nesse período são discutidas até hoje. Para citar apenas alguns exemplos, temos a veiculação de filmes nacionais na TV aberta; a autonomia da indústria do cinema no país; a construção de barreiras efetivas para impedir que a produção estrangeira continue dominando o mercado nacional; e a garantia da distribuição e exibição do filme nacional.

No entanto, um dos momentos mais drásticos para o cinema no país foi o período seguinte, que ficou conhecido como o “apagão do cinema” ou “Era Collor”. Naquele momento, o cinema e toda a produção cultural do país foi encarada como simples mercadoria e, dessa forma, desvinculada do Estado, sendo inserida de forma brusca e sem mediações na lógica da livre negociação. Fernando Collor de Mello que assumiu a Presidência da República no ano de 1990, o primeiro presidente eleito por voto direto após o regime militar, transformou a cultura em mercadoria da noite para o dia.

Com as denúncias cada vez mais constantes de corrupção na Embrafilme e, apoiado em seu discurso de candidatura de intolerância com a corrupção, Fernando Collor de Mello, de forma oportunista, fecha repentinamente as atividades da Embrafilme, deixando o cinema sem ligação nenhuma com incentivos e apoios governamentais.

O fim do modelo de produção cinematográfico da Embrafilme já era esperado no campo cinematográfico – fato totalmente inesperado foi a ausência de qualquer contraproposta de política cultural por parte do Estado. Havia indícios de que isso poderia acontecer quando Collor nomeou para Secretário de Cultura o cineasta Ipojuca Pontes, notório opositor do modelo de financiamento cinematográfico praticado pela Embrafilme e também defensor da cultura como “problema de mercado”, mas foi difícil para a classe cinematográfica acreditar que, depois da extinção da Embrafilme, nada fosse colocado em seu lugar, deixando o campo cinematográfico à deriva. (MELEIRO, 2012, p. 22)

Segundo Alessandra Meleiro, “a tônica do governo, em relação à área cultural, foi desobrigar o Estado com a cultura: cultura é papel do mercado e não do Estado” (MELEIRO, 2012, p. 40). O impacto dessa ação nos meios culturais foi devastador, deixando muitos artistas e produtores sem nenhuma alternativa viável de sobrevivência a curto e médio prazo. Essa ação neoliberal no cinema, por exemplo, gerou a interrupção total de praticamente todas as produções audiovisuais do país de forma imediata, criando um cenário catastrófico, o que para muitos significou o fim do cinema no país. Alessandra Meleiro diz que “a ruptura da sólida ligação entre o Estado e o cinema brasileiro, decretada por uma medida provisória, representou um forte abalo no campo cinematográfico, desestruturando-o totalmente” (MELEIRO, 2012, p. 33). O depoimento da cineasta Suzana Moraes, que em 1990 estava no meio da produção do seu filme Mil e Uma, uma coprodução com a TV espanhola, evidencia o caos do período:

Fiquei louca, pois além de cortarem tudo no auge da adrenalina do começo das filmagens, obviamente perdi minha grana. Para complicar, a situação com os espanhóis ficou difícil, pois havia assinado um contrato internacional e eles me perguntavam: “Que país é esse que não honra seus contratos?” Fiquei deprimida, literalmente de cama. Depois de um tempo, pensei: não quero isso na minha biografia, ser uma “vítima de Collor. (apud MELEIRO, 2012)

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As principais ações que desestruturaram por completo o audiovisual no país na fase em que Fernando Collor de Mello permaneceu na Presidência da República (1990 - 1992), foram: o fim do Ministério da Cultura (criado na gestão José Sarney pelo decreto 91.144 de 15 de março de 1985), a extinção da Embrafilme (órgão responsável pelo financiamento, coprodução e distribuição dos filmes nacionais) e o fim do Concine (órgão responsável pelas normas e fiscalização da indústria e do mercado cinematográfico no Brasil, controlando a obrigatoriedade da exibição de filmes nacionais). Além da extinção da Lei Sarney, criada em 1986, também foram extintos, a Pró-Memória, Funarte, Fundação do Cinema Brasileiro entre outros órgãos ligados à cultura.

O cineasta João Batista de Andrade deixa claro o sentimento do período:

Collor acabou com a política do cinema, jogando fora o bebê com a água suja, sendo que poderia ter feito um processo progressivo. Eu, por exemplo, tinha uma proposta para a Embrafilme. Como ela vivia dos impostos de cinema, poderia se tornar uma carteira descentralizada de financiamento, criando o adicional de bilheteria para premiar a performance de um filme nos cinemas, e continuaria sendo a distribuidora comercial. De 600 funcionários, passaria a ter 50. Mas, como todo mundo falava mal da Embrafilme, inclusive os cineastas, Collor com o seu oportunismo e irresponsabilidade, resolveu acabar com a Embrafilme e o Concine (apud MELEIRO, 2012, p35).

Jean-Claude Bernardet, em artigo publicado na Folha de São Paulo em 23 de junho de 1990, aponta que a crise do cinema já estava de certa forma posta antes do período Collor, dentro da própria estrutura da Embrafilme, do Concine e da Fundação do Cinema Brasileiro, já que essa estrutura era alvo constante de críticas dos próprios cineastas e produtores:

Mas é lícito perguntar-se se a causa de tal crise está nas medidas do governo Collor. Para abordar a situação cinematográfica, que conheço melhor, deve-se dizer que antes da tomada de posse de Collor, só havia, por parte dos profissionais, queixas em relação à Embrafilme e à Fundação do Cinema Brasileiro. Inoperância, má gestão administrativa, favoritismo, não cumprimento de compromissos. As instituições federais relativas ao cinema entraram num acelerado processo de decadência na gestão do ministro da cultura Celso Furtado.

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Jean-Claude Bernardet diz ainda que, no caso do cinema, a produção estava quantitativamente num dos seus momentos mais baixos das últimas décadas e lança uma questão:

Ao extinguir essa estrutura, o governo Collor fez pouco mais do que colocar uma pá de cal no moribundo. A pá de cal foi violenta, interrompendo projetos cinematográficos, teatrais etc. que já estavam em andamento e com perspectivas positivas. O método usado foi o da cirurgia sem anestesia, muito sangue correu e corre. Esse sangue não será recuperado. Mas também não há como reivindicar junto ao governo uma reposição da estrutura anterior, tão criticada e em plena decadência. Difícil é aceitar que não tenha havido respeito a compromissos assumidos quer pela estrutura estatal, quer através da Lei Sarney. Igualmente difícil é aceitar o que parece ser uma total ausência de proposta política cultural por parte do governo. Até paradoxal essa ausência. Antes da posse, o candidato e depois o presidente eleito manifestou o desejo de colocar o Brasil no primeiro mundo. Ora, os países do primeiro mundo, inclusive para manter sua aura política e influência econômica, se valem de uma irradiação cultural conquistada pela repercussão internacional de parte de sua produção artística.

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Graças à uma jogada política e preocupado com a alta taxa de rejeição nos meios culturais, no final dos anos 1991 Collor substitui o Secretário de Cultura Ipojuca Pontes por Sérgio Paulo Rouanet. Essa mudança ocasionou alterações imediatas na política cultural do governo, como explica Meleiro (2012, p. 44):

Assim que tomou posse, o secretário organizou pesquisas e fez reuniões com a classe artística, ouvindo suas principais reivindicações e queixas. A principal reivindicação dos produtores culturais foi a volta da lei de inventivos fiscais (a lei Sarney), que havia sofrido muitas denúncias de irregularidades na utilização do dinheiro público, o que justificou sua extinção, já que fazia parte do projeto de governo Collor acabar com a corrupção.

No dia 09 de agosto de 1991, foi divulgado para a imprensa o “Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC”, que ficou conhecido como Lei Rouanet (Lei n° 8.313, só aprovada pelo senado e pelo congresso em dezembro do mesmo ano).

O Pronac foi muito bem aceito pelo campo cinematográfico, mas os cineastas acharam que apenas este mecanismo de patrocínio não era suficiente para estimular a produção cinematográfica, que neste momento estava praticamente paralisada: enquanto a média de produção cinematográfica brasileira na década de 1980 era de oitenta filmes por ano, em 1990 foram lançados apenas sete filmes, em 1991 dez filmes e em 1992 apenas três longas-metragens nacionais chegaram às salas de exibição.

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A grande preocupação dos produtores e cineastas do período era retomar a produção dos filmes; por isso, as principais reivindicações giraram em torno dessa etapa. Depois do impeachment de Collor, no ano de 1992, o cinema inicia uma nova fase apoiada nas leis de incentivo, tendo como principal mecanismo a Lei do Audiovisual, criada em 1993, na gestão Itamar Franco, vice de Collor que assumiu a presidência e restabeleceu o Ministério da Cultura.

A partir de 1993, após o processo de impeachment que levou ao afastamento de Fernando Collor de Mello, estabeleceu-se uma nova política federal voltada para o cinema, cuja base foi definida pelo Governo Itamar Franco e perpetuada nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. Seu conceito primordial foi o da renúncia fiscal, com a utilização de duas leis: a de número 8.685, aprovada em 20 de julho de 1993 (chamada Lei do Audiovisual), e a de número 8.313, de 23 de dezembro de 1991 (conhecida como Lei Rouanet e, que, apesar de ter sido criada durante o Governo Collor, só passou a ser efetivamente utilizada depois de 1993). (ALMEIDA; BUTCHER, 2003, p. 24)

Ambas as leis permitem às empresas que o dinheiro investido na produção de filmes brasileiros seja deduzido de seus impostos de renda, como explicita o trecho abaixo:

A Lei do Audiovisual tem dois dispositivos principais: o artigo 1° determina que as empresas podem deduzir até 3% do total de seu imposto de renda se esse dinheiro for revertido para a produção de obras audiovisuais; o artigo 3°, por sua vez, incentiva as distribuidoras estrangeiras a investir na produção nacional, permitindo a dedução de até 70% do imposto sobre a remessa de lucros para o exterior. (ALMEIDA; BUTCHER, 2003, p. 24)

Dessa forma, e a partir da lógica das Leis de incentivo, o Governo Federal inverteu o mecanismo até então estabelecido, por meio do qual o Estado é centralizador e tomador de decisão, transferindo ao setor privado e às empresas públicas o poder de escolha e investimento nos projetos a serem realizados.

Foi após alguns anos, devido à complexidade dos mecanismos, que os primeiros resultados começaram a aparecer. As leis de incentivo conseguiram, em um primeiro momento, movimentar a produção do setor. Os principais filmes do período, que ficou conhecido como a Retomada do Cinema, foram: Carlota Joaquina - Princesa do Brazil(1994) de Carla Camurati, O Quatrilho(1995) de Fábio Barreto (indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro), Terra Estrangeira(1995) de Walter Salles e Daniela Thomas.

Na sequência, filmes como O que é Isso, Companheiro?(1997) de Bruno Barreto foi selecionado para a competição oficial do Festival de Berlim, Central do Brasil(1998) de Walter Salles foi selecionado para dois importantes festivais: o Sundance Film Festival, o mais importante dos Estados Unidos, e o Festival de Berlim. Além disso, o filme conquistou o troféu Globo de Outro, dado pela Hollywood Foreign Press Association e foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz para Fernanda Montenegro.

O Cinema da Retomada, por diversos motivos, mas principalmente por apostar todas as fichas na consolidação de uma indústria do cinema no país através de leis de incentivo – e por, talvez, não ter focado de forma sistemática em problemas já apontados pelos cinemanovistas (distribuição, exibição e parceria com a TV) –, criou uma série de filmes influenciados pela indústria cultural e com qualidade regionalista. Ou seja, foram contra toda a tradição do Cinema Experimental (Cinema Novo, Cinema Marginal e Movimento Superoito) e iniciaram uma produção de filmes seriados que, nos primeiros anos, obtiveram sucesso de público e reaqueceram a esperança de se fazer filmes no Brasil, mas que logo em seguida se mostrou frágil em linguagem e evidenciou que o cinema estava cada vez mais dependente do Estado.

O modelo de isenção fiscal foi largamente ampliado no período FHC e fortemente defendido, por exemplo, pelo ex-ministro da cultura Francisco Weffort (1995 - 2002), como um modelo democrático, centrado no Estado e fundamental para a cultura e o cinema no país. Os trechos abaixo, de diferentes momentos (1998 e 2013 respectivamente), exemplificam a visão de Weffort:

Quando este governo se iniciou, em 1995, o grande problema era produzir cinema e, ainda assim, nós estamos agora com uma porcentagem de oferta de filme nacional no mercado que é alguma coisa perto de 5%, 6%. Se eu apanhar a lista dos filmes que se oferecem no mercado, nós temos cerca de trezentos filmes no ano, e o cinema nacional chega a vinte filmes, 6%, 7%, 8%. Então o nosso objetivo fundamental era de produzir. Nós terminamos o ano de 1994 tendo produzido completamente quatro filmes; e de lá para cá nos produzimos 94 filmes.

A cultura tem que ser concebida como investimento de Estado, do mesmo modo que a educação, que a saúde. O cinema francês, em certa época, dava mais lucro do que a indústria. A Brigitte Bardot trouxe mais dinheiro para a França do que a Renault.

Se em um primeiro momento o modelo de isenção fiscal mostrou ser um novo caminho para se produzir filmes por ter representado um impulso para o setor rumo à tão sonhada industrialização, na prática ele gerou, logo em seguida, mais vícios de mercado do que soluções industriais e de autonomia. O Estado, a partir da lógica das leis de incentivo, privatizou o dinheiro público ao dar autonomia e poder de decisão para o setor privado. “Uma das críticas mais ácidas que as leis de incentivo a cultura recebem no Brasil diz respeito a um efeito “Robin Hood às avessas”, dinheiro público para apoiar projetos financiados por muitos, mas restritos a poucos”. (REIS, 2007, p. 212)

Essa questão é a principal crítica à esse mecanismo de financiamento, pois ao longo do tempo ele criou um vício por parte das empresas que apoiam projetos via leis de incentivo: ao perceberem que poderiam deixar de pagar uma parte do Imposto de Renda (IR) e aplicar uma porcentagem em “produtos audiovisuais”, passaram a utilizar o mecanismo a partir de seus interesses de comunicação, ou seja, filmes que de alguma forma dialogam com o perfil da empresa ou que façam parte de uma estratégia de comunicação desejada pela mesma. As leis de incentivo passaram então de um mecanismo criado para impulsionar a autossuficiência da indústria, com o Estado ocupando um papel central, para um incentivo que financia indiretamente o setor privado e suas aspirações mercadológicas. Isto é, uma contradição central foi criada dentro desse desenho de política pública, pois o poder de administração do dinheiro público fica nas mãos do setor privado.

O problema, já muito debatido, coloca em xeque a própria estrutura do modelo, já que aprovar um projeto na Ancine para captar recursos não é mais o problema, mas sim conseguir quem invista no projeto. E mais, logo no início, o projeto começa a ser mediado pelas possíveis relações de mercado, visto que os produtores os iniciam visando possíveis “apoios”, pré-acordos e encomendas. É o que fica evidente no trecho abaixo:

Os problemas existentes hoje no Brasil, quanto à captação de recursos via leis de incentivo fiscal, relacionam-se ao fato de produtores culturais de grande e pequeno portes lutarem pelos mesmos recursos, num universo ao qual se somam as instituições públicas depauperadas, promovendo uma concorrência desequilibrada com os produtores independentes. Ao mesmo tempo, os profissionais da área artístico-cultural são obrigados a se improvisar em especialistas em marketing, tendo de dominar uma lógica que pouco tem a ver com a da criação. Aqui, tem-se um aspecto mais grave e que incide sobre a qualidade do trabalho artístico: projetos que são concebidos, desde seu início, de acordo com o que se crê que irá interessar a uma ou mais empresas, ou seja, o mérito de um determinado trabalho é medido pelo talento do produtor cultural em captar recursos – o que na maioria das vezes significa se adequar aos objetivos da empresa para levar a cabo o seu projeto – e não pelas qualidades intrínsecas de sua criação. “Antes de qualquer coisa, identificar as necessidades das empresas” é a dica fundamental dada por um profissional do marketing aos produtores culturais, numa revista especializada. (BOTELHO, 2000)

Nos dias atuais, com a produção cada vez mais apoiada em leis de incentivo, editais públicos e fundos, o que fica claro é que a experimentação está cada vez mais na margem, ou ainda, totalmente esquecida, sem espaço. A corrida por editais ou por dinheiro para as produções impõe uma lógica de mercado desde o princípio – ainda na elaboração do projeto –, pois os projetos devem ser submetidos às regras desses mecanismos, que por sua vez determinam o modelo e o padrão de se fazer filmes. Ou seja, se durante os anos 1970 e 1980 o termo “Mercado é Cultura”, utilizado pela Embrafilmes, causou o espanto de alguns e serviu de bandeira para outros, nos atuais dias essa ideia é levada a cabo sem grandes manifestações, apenas com adequações por parte dos cineastas aos atuais modelos.

Na contramão – e na tentativa de retomar o caráter experimental nas produções audiovisuais –, um dos modelos que se configurou como alternativa foi a organização de coletivos. Diversos deles surgiram principalmente a partir do ano 2000. Coletivos como Cobaia, Frente 3 de Fevereiro, Bijari, Embolex, Teia, casadalapa, Alumbramento só para citar alguns, mostraram ser, de alguma forma, uma nova organização para conquistar uma “liberdade perdida”. O que aparece nesse tipo de organização em um primeiro momento é a resistência em relação a produção da indústria cultural e aos mecanismos de financiamento do filme no país. Tomo como exemplo, para ilustrar esse aspecto, um dos trabalhos realizado pelo coletivo casadalapa: Enquadro II, Tiaguinho da Redenção(2010).

A _casadalapa_ é um coletivo formado por 15 artistas de diferentes áreas (cinema, artes plásticas, teatro, design, arte de rua, grafite) com um objetivo: fortalecer as individualidades e buscar uma forma de produção menos apoiada nos modelos de financiamento da cultura e do filme. Ao longo dos oito anos de existência a _casadalapa_ criou uma rede de artistas que circulam semanalmente pela sede do coletivo localizada na Vila Ipojuca, em São Paulo. Uma das maiores preocupações do grupo é refletir sobre a estética e a criação para além do mercado e dos modelos de financiamentos do setor cultural. Para isso – mediante uma criação coletiva horizontal, em que não existe hierarquia na criação –, a _casadalapa_ levou para a prática a ideia de criação múltipla, aderindo o processo de montagem como estética, como ponto de união entre as diversas linguagens, como princípio, meio e fim de toda a criação dos projetos da casa. Fernando Sato, integrante da _casadalapa_, em entrevista 8 para o _Rumos Itaú Cultural_ explica esse processo: “todos assinam como autor da obra, não existe diretor e nem cargos específicos. A reunião de rabisco é um momento de encontro e construção”. (RUMOS, 2009)

O processo de criação das intervenções da casadalapa é uma espécie de recorta e cola muito parecido com o processo de montagem da Moviola, chamado internamente de “reunião de rabisco”. Essa “reunião de rabisco” é formada pelos diversos profissionais das diversas áreas, que juntos desenham e organizam toda a história do filme/livro/intervenção/projeção em uma folha gigante colada na parede da sala da casa. Essa folha fica por semanas até a história/intervenção ser estruturada. Em alguns momentos esse processo lembra a ideia de Kuleshov

9 : “Se você tem uma ideia-frase, uma partícula do argumento, um elo da cadeia dramática total, então a ideia deve ser expressada e acumulada a partir de cada menor plano, exatamente como tijolos”. 10

Já em outros momentos, e na maioria das vezes, a “reunião de rabisco” se aproxima da montagem como conflito, conceituada por Eisenstein

11 :

O plano não é um elemento da montagem. O plano é uma célula da montagem. Exatamente como as células, em sua divisão, formam um fenômeno de outra ordem, que é o organismo ou o embrião, do mesmo modo no outro lado da transição dialética de um plano há a montagem. O que, então, caracteriza a montagem e, consequentemente, sua célula – o plano? A colisão. O conflito de duas peças em oposição entre si. O conflito. A colisão. (EISENSTEIN, 1949/2002, p. 81)

A “reunião de rabisco” não só trouxe para o coletivo uma consciência do todo, como também a possibilidade de experimentar diferentes formas de montar uma história ao longo de todo o processo de criação e produção de suas obras, sejam elas audiovisuais ou não. São inúmeras intervenções, vídeos, exposições, peças de teatro e vídeo-instalações que o coletivo tem em seu repertório, mas o projeto principal da casadalapa, onde todos os 15 integrantes e todos os aliados

12 participam, chama-se Enquadro, que segundo o próprio coletivo:

É uma Crônica ilustrada dos Bairros de São Paulo, pelo cotidiano dos seus habitantes. “Personagens anônimos que contam através de sua existência a alma dos bairros desta cidade são o mote para esta HQ Urbana, as redes não virtuais entre personagens reais.” Um processo coletivo, que reúne artistas, entre eles grafiteiros, artistas plásticos, web designers, fotógrafos, vídeomakers, roteiristas, montadores de cinema, produtores musicais, djs, produtores, figurinistas e atores. Todos reunidos para contar, desenhar, esculpir, fotografar, gravar, editar, costurar, interpretar, uma única história.

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Um exemplo é o processo de criação do Enquadro II – Tiaguinho da Redenção

14 , realizado no ano de 2010. Foram inúmeras “reuniões de rabisco” e visitas ao bairro Itaim Paulista, localizado na periferia de São Paulo, para organizar a intervenção. A aproximação do grupo com a comunidade se deu através de um dos fundadores da casadalapa, Júlio Dojscar (artista de rua e grafiteiro), que nasceu e cresceu no bairro do Itaim Paulista. Júlio foi o abre alas e, a partir daí, o elo entre os moradores e o coletivo foi fortalecido nas “reuniões de rabisco” organizadas no próprio Itaim Paulista. Foram nessas reuniões que os participantes/moradores se juntaram ao coletivo até o ponto que não se via mais divisões. Foi dessa forma que a história e o recorte foram montados. A intervenção do Enquadro II aconteceu em um final de semana do mês de agosto de 2010. Segundo Fernando Sato, artista residente da casadalapa: “o final de semana da intervenção foi e sempre é uma celebração do processo, onde as partes se juntam". 15

Podemos dizer, então, que esse processo de criação através da junção das partes gera um “conflito” – uma colisão, alcançando outros significados (EISENSTEIN, 1949/2002, p. 81). As características do projeto Enquadro, tanto em sua organização, como no caráter de intervenção e no resultado final, remetem à experimentos realizados pelos superoitistas. Se pararmos para analisar o resultado final do vídeo experimental Enquadro II iremos perceber em diversos momentos uma ligação tanto estética como em conteúdo.

O média-metragem foi captado em diversos suportes (EX3, 5D, 7D, HVX 200) e apenas um momento do filme, quando o personagem Tiaguinho recorda sua infância após ter sido agredido por traficantes, foi filmado em Super-8. Diversos personagens foram encenados por moradores do Itaim Paulista e o projeto contou ainda com a participação em peso de grafiteiros, da escola de samba Unidos de Santa Bárbara, localizada no bairro, além de moradores do entorno que colaboraram com depoimentos. O coletivo explica que:

O conceito do projeto Enquadro, desde a sua criação, prevê a continuidade e experimentação. Trata-se, na verdade, de uma série composta por diversos capítulos; cada capítulo retrata um drama específico e representativo da vida de um personagem e de seu espaço.

O conjunto dos personagens retratados no Enquadro compõe um grande painel da cidade e de seus bairros: como se o "espírito" de uma rua fosse materializado em grafite, foto, filme, música. Em diversas pessoas, em muitos lugares.

A nossa ideia de continuidade é ainda mais específica: os personagens estão todos conectados. As vezes em tramas sutis, outras vezes através de ligações mais fortes. Esse foi o caso do segundo capítulo da série: Tiaguinho da Redenção.

Tiaguinho é filho de Domingas. E aqui, no Enquadro II mostramos o que aconteceu depois que Tiaguinho desapareceu da vida de Domingas. E ainda as causas do seu desaparecimento.

A criação desse personagem está diretamente ligada a um lugar: o barracão de uma pequena escola de samba, localizado embaixo de um viaduto em Itaim Paulista. Nossa série foi para dentro da zona Leste, para contar o que aconteceu com esse personagem. Foi lá que trabalhamos, gravamos, grafitamos com a participação dos moradores e artistas da região. Seja através de entrevistas documentais, seja através da ação direta nas intervenções.

Participaram desse processo mais de 100 artistas. Foram convidados 2 grupos de grafite, 8º Batalhão e Turma 44 e mais de 20 grafiteiros, além de 2 grupos de teatro atuantes no Itaim, Primeiro Comando Teatral e Grupo Teatral da Loucura. A escola de samba Unidos de Santa Bárbara conquistou um espaço privilegiado na história. O grupo de circo Linhas Aéreas mudou a caracterização de um grupo de personagens. A pixação foi usada como linguagem. Também a fotografia stop motion e projeções sobre a cidade. O samba se misturou com o grupo afro Treme Terra. E no cortejo final, vários moradores se misturaram aos artistas.

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O resultado final é uma espécie de documentário-intervenção, onde tudo é revelado: câmeras, maquinário e, principalmente, o processo de construção do experimento. A participação dos grafiteiros é chave para o processo de criação, pois além de contribuírem nas reuniões de rabisco, são eles quem contam a história nos muros do bairro, mobilizando e incorporando a cidade como suporte narrativo. Também são eles que trazem, através do “pixo”, a intervenção em espaços públicos, qualidade encontrada em filmes produzidos pelos superoitistas como: Explendor do Martírio(1974) de Sérgio Peo, em que a intervenção é levada as últimas consequências resultando na prisão do ator durante a filmagem. Já em outros momentos, o vídeo experimental Enquadro II, remete à qualidades do filme Agrippina é Roma-Manhattan(1972) de Hélio Oiticica, em que uma personagem vestida de vermelho circula pela cidade de Nova York assumindo uma postura entre o monumento e uma prostituta. Já no Enquadro II, uma mulher surge com uma máscara em diversos momentos do filme, tanto em primeiro plano como também no fundo do quadro, “escondida”. Essa mulher traz a ideia de guia ao mesmo tempo que evidencia as dificuldades de se narrar uma história nos dias atuais e ajuda, da sua forma, a encontrar possíveis soluções.

Cena do filme de Hélio Oiticica _Agrippina é Roma-Manhattan_(1972) Cena do filme do coletivo _casadalapa Enquadro II Tiaguinho da Redenção_(2010)
Cena do filme de Hélio Oiticica: _Agrippina é Roma-Manhattan_ (1972)
Cena do filme do coletivo _casadalapa: Enquadro II Tiaguinho da Redenção_ (2010)

Para além dessas questões estéticas e de experimentação, existe um problema chave na estrutura do coletivo e que muitas vezes é o fator desmobilizador de qualquer experimento nos dias atuais: o modelo de financiamento. Nenhum coletivo ou experimentação de ordem estética conta com um modelo de financiamento específico, mas sim, apenas, com tímidos e raros editais que são abertos de forma aleatória e com pouquíssimos recursos. O edital Rumos Itaú Cultural é um exemplo. Suas diversas categorias, que vão desde Vídeo Experimental até Vídeo Instalação, estão apoiadas em critérios subjetivos de escolha, com uma convocação genérica de múltiplos artistas das mais distintas áreas, o que dá margem para pensar se estamos diante de uma convocação ou de um mecanismo de propaganda e divulgação, já que o orçamento disponibilizado para o edital não condiz com o esforço de divulgação do mesmo. Para se ter uma dimensão, o edital Rumos (2009) repassou para os contemplados valores entre R$ 15.000,00 (quinze mil reais) a R$ 70.000,00 (setenta mil reais). Nesta edição foram selecionados 24 projetos espalhados pelo Brasil, entre eles, na categoria Cinema e Vídeo, o média-metragem experimental Enquadro II: Thiaguinho da Redenção da casadalapa, que recebeu R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Com tal quantia não é possível pagar a produção de um média-metragem, muito menos os profissionais.

Ou seja, se em um primeiro momento esses coletivos/cineastas apresentam-se como uma possível saída em busca de uma maior liberdade criativa, em um segundo momento fica claro que esses grupos estão submetidos a mecanismos ainda mais precários do que o próprio cinema, afinal quando não conseguem financiamento para seus experimentos, encontram-se precarizados e “forçados” a vender suas forças produtivas, muitas vezes para abastecer o mercado de publicidade. Basta visitar os sites dos coletivos Embolex ou Bijari.

A grande questão é: quando esses coletivos encontram um modelo de financiamento (nos dias de hoje) é porque, talvez, já estejam assimilados, seja através das exigências do edital – que podem gerar alterações no projeto para torná-lo mais competitivo – ou, ainda, na aceitação de fazer o filme praticamente sem recursos, caso do média-metragem experimental Enquadro II. Ao fazerem isso estão reafirmando a precarização sem se reconhecer nela e mais: reforçam o mercado que hoje encontra-se flexibilizado e que se abre apenas a partir dos interesses do capital.

A existência desse setor satélite dependente cumpre uma função muito importante para as indústrias culturais, porque permite a elas aliviar de seus próprios ombros grande parte do custo e risco da pesquisa e desenvolvimento cultural e transferir o peso para este setor explorado, parte do qual termina financiado com o erário público. Isso também permite manter uma alta rotatividade constante da mão de obra cultural criativa sem correr o risco de greve ou possível custo de indenizações por despendimento ou pensão. E se beneficiam ainda quando, como é frequentemente o caso, os próprios trabalhadores de boa vontade vestem a camisa em nome da liberdade. (GARNHAM, 1987, tradução própria)

O projeto Enquadro II, hoje faz parte de um Box com outros contemplados pelo Rumos (2009). Esse Box é composto por um catálogo trilíngue que é exibido apenas nas unidades do Itaú Cultural. Não se sabe o custo exato gasto da produção do Box, da autoração dos dvds, da produção dos textos e das traduções, mas pode-se intuir que deve ter custado, pela qualidade e cuidado com o material, mais do que todo o dinheiro investido nas produções da edição Rumos(2009). Essa é uma lógica fácil de entender e de certo modo compreensível, já que a metodologia do atual modelo de financiamento do filme flerta com a lógica da propaganda.

Esses profissionais formam o “Exército Industrial de Reserva”

17 e a precarização é reforçada pelo discurso da autonomia criativa, gerando problemas tanto de organização de classe, como também problemas estruturais, já que esses profissionais assumem a multiplicidade como saída para conseguir uma renda fixa mínima, tornando-se prestadores de pequenos serviços – na lógica flexível, os pares passam a ser concorrentes.

Dessa forma, os modelos de produção do filme no Brasil – modelo Embrafilme, isenção fiscal, editais e fundos – foram ao longo do tempo sendo substituídos e/ou sofrendo reparos constantes, gerando novas formas de organização do setor, das relações de trabalho e de organização do trabalhador do cinema. A lógica flexível acabou estabelecendo-se como a forma de produção do filme, com relações informais que se arranjam de acordo com cada produção/projeto. Nessa lógica, a disputa entre os pares faz parte do dia a dia, pois a flexibilidade transforma a classe trabalhadora em concorrente ao inserir os trabalhadores em uma disputa acirrada por espaços e oportunidades. Essa característica, que está arraigada em todo o setor, vai ao encontro às regras da flexibilidade, que enxerga na desmobilização e na administração da insegurança a possibilidade de controlar o trabalho e gerar lucros para os que estão na ponta da cadeia produtiva. Sejam eles os grandes produtores (no Brasil existe uma tradição forte de produtores que controlam politicamente o setor), as grandes distribuidoras (majors), exibidores e produtores internacionais ou, ainda, a exploração de pequenos espaços que configuram-se através de acordos de risco e/ou através da desvalorização de determinados setores da cadeia produtiva, como é o caso dos profissionais que se organizam em coletivos.

Coletivos como a casadalapa, mesmo com propostas não clássicas, estão de certa forma à serviço da lógica do mercado, pois nos dias atuais não existe mobilização de classe (basta contar o imenso e desproporcional número de associações existentes no setor cinematográfico), o debate está enfraquecido, o setor fragmentado e os pares, por conta dos novos tempos flexíveis, disputam espaços apertados ao invés de reivindicar melhores condições de trabalho para todo o setor.

A intervenção, agora, deve ser política.

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