Cena de "Os Sertões - Luta II - O Desmassacre" do Teat(r)o Oficina

Labirintos da Terra Brazylis

Glauber, Teat(r)o Oficina e a Epifania Final

Josafá Veloso

  1. Nunca mais fui o mesmo depois de ver Os Sertões - Luta II - O Desmassacre no Teat(r)o Oficina de São Paulo. “Foi destino certo”, como diz cego Júlio para Antônio das Mortes em Deus e o Diabo, de Glauber. Nunca havia visto um espetáculo do Oficina. Haviam me dito que aquela era a última parte da adaptação da obra clássica de Euclides e que durava mais de seis horas (!). Ao término do primeiro Ato. Três horas e meia depois, eu realmente achei que todas as seis horas de espetáculo haviam se passado. Senti isso não por tédio, mas por êxtase. Ali, na terra da Rua Jaceguai, eu havia passado por uma experiência de transe, de não-tempo: Um gostinho de ETHERNIDADE. Bateu no meu corpo um ritual antropofágico que no mesmo caldeirão misturava o profeta-bailarino Zaratustra, o rigor cósmico de Artaud, a alegria de Oswald e as alegorias de Glauber.

Glauber completaria 76 anos no último dia 14 de Março. No dia, um sábado, revi Deus e o Diabo na tela grande. Ele sempre me pega. Entro num leve transe. Do signo de Peixes, Glauber faz aniversário um dia depois de seu conterrâneo, o baiano Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, líder messiânico do arraial de Canudos. Revia o filme 51 anos depois de sua primeira exibição que aconteceu no dia 13 de Março de 1964, na mesma hora em que Jango discursava na Central do Brasil: o estopim do Golpe Militar que (ainda) não acabou.

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Vendo o filme, tremo ao ouvir o vaqueiro Manuel, no alto de Monte Santo, confessar aos céus e ao vento bravo que corta como lâmina a pequena multidão de beatos que “Tô condenado, mas tenho coragem! Entrego meu caminho ao Senhor pra libertar o meu povo!”. Sobe a música de Villa-Lobos. Manuel se ajoelha aos pés do beato Sebastião, uma versão de Antônio Conselheiro à Glauber. Um Conselheiro negro. Preto como o Firmino de Antônio Pitanga em Barravento, ou como Zumbi em O Leão de Sete Cabeças, ou o Cristo Negro (novamente encarnado por Pitanga) de Idade da Terra...

Assim Euclides descreveu um negro que o impressionou num dos momentos derradeiros da Campanha: “um primor de estatuária modelado em lama (...), feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos.” (CUNHA, 2001, p.732).

Ora, this is it: “Moir, un noir”.

  1. Glauber era mais cristão que dionisíaco. Evidente. O que pode colaborar para alguns devaneios diante de sua morte trágica. “Vou morrer com 42 anos”, dizia. “O dobro de idade com que morreu Castro Alves”. Por duas vezes, na voz de Sérgio Ricardo, ouve-se em Terra em Transe os versos do poeta romântico: “A praça é do povo, como o céu é do Condor”.

O povo. Euclides da Cunha, antes de Gilberto Freyre, antes de Darcy Ribeiro, anuncia o Povo Brasileiro! Qual a força místico-política deste povo? É a pergunta que fazem os filmes de Glauber e a transcriação de Os Sertões realizada pelo Teatro Oficina.

Paulo Martins, o poeta-intelectual de Terra em Transe, assim delira em sua mórbida decomposição: “Ando nas ruas e vejo o povo magro, apático, abatido. Este povo não pode acreditar em nenhum partido. Este povo alquebrado, cujo sangue sem vigor, este povo precisa da morte mais do que se possa supor. O sangue que estimula no irmão a dor, o sentimento do nada que gera o amor; a morte como fé, não como temor”.

Aviso a todos os esquerdistas de todas as Universidades Federais deste país: Jamais se erguerá uma revolução proletária entre nós. Paulo Francis dizia: “Só mesmo no Brasil pra se levar comunismo a sério”. Ora, o que emana do povo não é a consciência diante da luta de classes, mas o misticismo. É isso que nos diz a obra de Glauber, do Oficina e do próprio saudoso Eduardo Coutinho que, como Glauber, tinha o mesmo gosto pelo plano-sequência, a fabulação, o mágico...

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A Idade da Terra, assim como Luta II, propõe uma Revolução Estética. A forma é o conteúdo. Brecht é um lindo poeta. Mas mais importante que a consciência é a percepção. As ideologias do século XX só nos deixaram cinzas. Não se enganem. Guerra sem dor. Luta sem armas. Magia. Antropofagia. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça.

  1. Zé Celso e o Oficina, no entanto, são, definitivamente, mais dionisíacos que cristãos. A cada dia que Zé continua vivo, mais indestrutível continuam a ser suas escolhas para uma vida tragicômica de inspiração oswaldiana (e nieztcheana). Ao final de Luta II, Canudos está cercado. Antônio Zaratustra Conselheiro (Zé Celso) prepara-se para deixar a terra dos viventes e embarcar para o Céu. Glauber Rocha (Mariano Mattos) aparece como numa grua para filmar o enterro do Conselheiro, (como em Di-Glauber de 1977), “Glauber!”, exclama um surpreso Zé-Conselheiro.

Esta cena pode ser vista e revista pela ETHERNIDADE em DVD, na caixa com todos os filmes d´Os Sertões, à venda na bilheteria do Teatro Oficina, no Bixiga. Eryk Rocha, filho de Glauber (diretor do belíssimo Rocha que Voa), dirigiu esta quinta e derradeira Luta II - O Desmassacre.

Estive presente nas exibições das cinco partes de Os Sertões nos cinemas, em Setembro de 2010. Lembro-me que antes de começar a sessão de Luta II, Zé Celso, antes de sentar-se, disse aos poucos presentes: “Hoje é um dia histórico!”.

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Na esteira dos delírios de Richard Wagner, inseri-se Luta II. Filme magnífico. Cinema Total. Nele já não há apenas Nietzsche, Artaud, Oswald e Glauber, que dançavam juntos no teatro desenhado por Lina Bardi. Aqui, uma fronteira foi atravessada. Em Luta II, o filme, as especificidades do cinema são postas à prova. Em seus procedimentos de filmagem e, notadamente, de montagem, dão o ar da graça inspirações vindas de Eisenstein, Buñel e Kubrick. Meninos, eu vi.

  1. Em O Encouraçado Potemkin há uma insatisfação dos marinheiros cuja origem foi a péssima alimentação abordo. Até os primeiros quinze minutos de filme, poucas intervenções radicais na linguagem. Porém, quando um dos marinheiros lava um dos pratos da tripulação, vemos em close a inscrição de uma frase da Oração do Pai-Nosso: “O pão nosso de cada dia dai-nos hoje”. Violentamente, o marujo quebra o prato. Os fotogramas da sequência se repetem. São postos fora de continuidade. É a primeira fagulha de revolta do encouraçado! A impressão sensível que se tem é a de conflito. A mesma impressão de choque que se tem com as repetições de fotogramas e a descontinuidade de Corisco ao saltar para trás após o mandato de Antônio das Mortes: “Se entrega Corisco!”. O mesmo conflito, o mesmo choque que se sente em muitas sequências de Luta II.

Assim diz o Fólio 2 do artigo “Dramaturgia da Forma”, de Eisenstein, de abril de 1929:

No campo da arte, o princípio dialético da dinâmica ganha corpo no

CONFLITO

Como o mais essencial princípio fundamental da existência de toda a obra de arte e de todo gênero artístico.

Pois a arte é sempre conflito:

  1. Segundo sua missão social

  2. Segundo sua essência

  3. Segundo sua metodologia

(ALBERA, 2011, p. 80,81).

Em novembro de 2007, o Teatro Oficina completava um círculo iniciado em 1971 na viagem de “Utropia” pelo Brasil. Se lá o Oficina desejava um filme a partir de Os Sertões, aqui, 36 anos depois, Os Sertões, (suas cinco partes, que juntas somam mais de 26 horas), era levado à cidade de Canudos, no interior da Bahia. Ava Rocha, filha de Glauber, irmã de Eryk, assistente de direção de Luta II, fez dessa empreitada um filme chamado Ardor Irresistível, de 50 minutos. Alternando imagens das apresentações com experiências mais sensoriais com os atores do grupo na Caatinga, Ava deixa para o final a imagem síntese deste labirinto: Em mística introspecção, sobem Monte Santo, Antônio Zaratustra Conselheiro (Zé Celso), Glauber Rocha (Mariano Mattos) e outros personagens da peça-filme. No cume da montanha sagrada, na última imagem do filme, vê-se, em câmera lenta, na luz estourada do Sertão: Dionísio! (Lucas Weglinsk).

Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa, Glauber Rocha e o Teatro Oficina são galhos do mesmo tronco. Enveredando no labirinto mítico do Sertão metafísico da Terra do Pau Brasil.

BIBLIOGRAFIA

ALBERA, François. Eisenstein e o Construtivismo Russo. São Paulo. Cosac Naify, 2011.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões, campanha de Canudos; Edição, prefácio, cronologia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

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