Frame do filme "Boe Eru Kurireu" de Paulinho Ecerae Kadojeba

Cinemas Indígenas e Trânsitos da Representação

Caio Lazaneo

Um olhar(es)

Dialogando com a proposta da Revista Agreste que na presente edição dedica seus bits aos “cinemas de resistência”, propomos aqui uma análise de diferentes representações audiovisuais de etnias indígenas - especificamente brasileiras - produzidas a partir de diferentes experiência cinematográficas, no âmbito do que tenho denominado – no plural – “cinemas indígenas”.

O recorte aqui proposto vai ao encontro da pluralidade que esta classificação pretende abarcar, compreendendo assim modalidades e linguagens tão diversas. Não obstante, é importante enfatizar que, no horizonte semântico, tal proposta fundamenta-se sobretudo na compreensão de Cinemas em que a autoria do filme pertença a um “realizador indígena”

1 ou que a mesma seja de algum modo negociada e, assim, o objeto desta negociação seja também explorado pelo filme. Não se trata aqui de delimitar um único locus específico para a autoria (tão somente da perspectiva do insider), senão, dentro desta modalidade, para a temática que o filme enseja, ou seja, como a autoria e a temática se interrelacionam no interior do produto fílmico. São, assim, cinemas em que, inexoravelmente, os modos de vida, os rituais e as práticas que distinguem as populações indígenas têm protagonismo no filme. Deste modo, trata-se inevitavelmente de um modelo etnográfico, embora possa também ser explorado no âmbito da “ficção” ou mesmo do chamado “docudrama” (em que os fatos reais são reencenados). Entretanto, filmes que abordam temáticas indígenas, seja de modo épico (p. ex. “Brincando nos campos do senhor, de Hector Babenco), ou mesmo folclorizado, ou ainda sob forte apelo regionalista, estatizante, museográfico, não tem lugar nessa classificação. Não seriam considerados “cinemas indígenas” aqueles que, nos moldes colonialistas, subjugam o modo de ser índio e o impingem, assim, a ingrata condição de objeto, de estado a ser superado.

Neste percurso que compreende algumas etapas do desenvolvimento do cinema e de certas modalidades como o filme etnográfico e o documentário, sublinho algumas experiências referenciais. Primeiro na perspectiva de registros realizados por não índios, visitamos o filme etnográfico “Rituaes e Festas Bororos” (1916) do Major Luiz Thomas Reis. Sobre este filme é necessária a observação de que o mesmo não se legitima, por motivos que se evidenciam ao longo da análise, na classificação de “cinema indígena”. Entretanto, diacronicamente, trata-se de um importante referencial na perspectiva brasileira da forma como se operavam os primeiros registros cinematográficos das populações indígenas. É, deste modo, um paradigma do qual parto para observar, sobretudo, outras formas em que se desenvolveu a autoria fílmica na interface com comunidades indígenas, tais como em “Serras da Desordem” (2006) do cineasta Andrea Tonnacci, e “Indígenas Digitais, o filme”, de 2010, de Sebastian Gerlic, disponível em plataforma online (filmes também analisados) - de autoria de não indígenas, ambos aqui considerados enquanto “cinemas indígenas”.

Num segundo momento, sob a perspectiva de representações realizadas pelos próprios indígenas, analiso o filme “TSÕ’REHIPÃRI” (2009), do cineasta xavante Divino Tserewahú, no qual a ênfase dialógica e a reflexividade são essenciais à construção da narrativa. Uma quinta representação analisada é a hipermídia “Boé Eru Kurireu” (A Grande Tradição Bororo), um produto que salta à categoria/suporte fílmica dialogando com o hipertexto e recursos não-lineares, num ambiente digital que hibridiza o documentário homônimo do bororo Paulinho Ecerae Kadojeba e a pesquisa de Sergio Sato

2 sobre a representação no contexto bororo.

Por fim, levantarei questões acerca da possibilidade de produção audiovisual através de um processo reticular de banco de dados fílmicos, ao qual chamamos reticularidade fílmica. Nesse sentido, a possibilidade hipermidiática, condição sine que non para essa proposição, se apresenta como uma possibilidade onde este conceito pode habitar, uma proposta também apta a repensar um processo no qual podem dialogar distintos saberes (dos índios e dos não índios), como também as matrizes escrita, imagética e sonora, entre outras possibilidades.

1. Os índios por não índios.

A proximidade e afinidade temática, o anseio pelo registro e pelo desvelamento do desconhecido, fez dos primórdios do cinema, como lembra Marc Henri Piault, uma espécie de “irmão gêmeo” da etnografia e não raras foram suas convergências de objetos. Em 1895, mesmo ano da primeira exibição do cinematógrafo dos irmãos Lumière, o francês Felix-Louis Regnault realiza o que é considerado o primeiro filme etnográfico, uma cronofotografia

3 de uma mulher woolf fabricando objetos de argila. Nesta contexto, a cinematografia incipiente apresentava-se como uma importante metodologia no auxílio dos viajantes e de seus relatos de viagem, ainda que, inexoravelmente, com um extremo lastro colonialista.

“Rituaes e Festas Bororo”: Uma etnografia do exótico.

A propagação das tecnologias da comunicação intensificadas pelo advento da eletricidade (como pode ser observado no caso do pretendido alargamento territorial através da expansão das linhas telegráficas promovidas pela Comissão Rondon), resultou na diluição do hic et nunc e numa extensão da capacidade de reprodução técnica da paisagem, o que Di Felice chamaria de uma forma de habitar exotópica(2009, p. 119). Por exotópico compreende-se um habitar em relação com um território múltiplo, autônomo e em relação externa ao sujeito. Em relação de exterioridade, de caráter do que é iminentemente “de fora”, também iremos encontrar no termo “exótico” um significado que remete, propriamente, ao olhar daquele que vem “de fora”, do estrangeiro, outsider.

O major Luiz Thomaz Reis é bastante reconhecido pelos diversos registros fílmicos e fotográficos realizados ao longo de sua chefia na Secção de Photographia e de Cinematographia da Comissão Rondon

4 . Seu filme “Rituaes e Festas Bororo”, de 1917, é um dos primeiros registros cinematográficos dos bororos (e, de modo geral, dos índios no Brasil) realizados por não-índios. Os registros realizados pelo Major Thomaz Reis proporcionavam claramente “um efeito dilatador e multiplicativo do espaço” (p. 119), expandindo o que até então era resumido em uma leitura tipográfica do relato textual dos viajantes. Como nos relata Fernando de Tacca, “Rituaes e Festas Bororo” foi exibido no Carneggie Hall em Nova York em 1918, através de patrocínio da rede National Geographic Society, ocasião na qual ocorreu a visita do próprio major e cineasta (2002, p. 200). Essa visita “foi nomeada pelo governo brasileiro “Expedição científica Roosevelt-Rondon” 5 . Por esse fato, observamos que esse exercício etnográfico recebia o aval oficial do governo brasileiro como um exercício científico além de “civilizatório”, do qual também dependia Rondon para o apoio à expedição.

Numa perspectiva “exotópica”, portanto, “mecânica e externa de ser”, representante aqui do olhar do “estado” sobre a figura do selvagem incrustrado nos confins longínquos do país, essa forma comunicativa estabelece-se numa relação de frontalidade. Nesse sentido, uma etnografia que privilegia uma dinâmica frontal e externa ao seu “objeto” e que utiliza no cerne de sua metodologia essa distinção, aponta-nos para uma mediação em que não se evidencia o diálogo no processo de construção fílmico. Uma representação em que, como destaca Massimo Canevacci (2009, p.163), “as tomadas dos nativos são feitas conforme o estilo antropométrico vigente na época – de estreita derivação da antropologia criminal – de modo que o sujeito ‘outro’ é filmado antes de frente e, depois, de perfil. O objetivo desse contato era o de transformar os índios em trabalhadores nacionais.”

Em sua análise do filme “Rituaes e Festas Bororo”, de Tacca descreve que “no primeiro instante, a câmara dirige, em parte, a ação dos indivíduos e escolhe-se o lugar para filmar a ação e o sujeito a ser filmado. A presença da câmara é muitas vezes anunciada pela inquietação dos sujeitos filmados que constantemente repetem olhares para o extraquadro antes de olhar diretamente para a câmara, estabelecendo uma pró-filmia (...) Por outro lado, durante as danças do ritual, a posição e o ângulo de tomada da câmara são pensados em termos de uma “neutralidade” ou “imparcialidade” na medida em que procura não se “interferir” nas ações.” (2002, p. 205-206).

O filme segue uma dinâmica descritiva, na qual o cotidiano dos bororos é mostrado tanto visualmente, quanto nas inserções textuais que antecedem (e redundam) as cenas, uma estratégia propícia a um momento em que não se fazia possível o registro sonoro de modo síncrono à imagem. Nas cenas inicias observamos a legenda que descreve o processo com o qual os bororos batem o cipó timbó, “que deixa n’água um narcótico particular”, para realizar a pescaria, e que é mostrada logo em seguida. Durante o filme, o Major Thomaz Reis vai esmiuçando sua versão sobre os rituais e festas bororos, ora com cenas que embasam sua descrição textual, ora imprimindo uma visão bastante romanceada de seu “objeto”, como ao final do filme em que o último letreiro relata “Tínhamos ali a sensação dos remotos tempos do descobrimento”, uma estrutura narrativa em que se sucedem textos e imagens numa pretensa “não interferência”, que, no entanto, acentua o caráter da exterioridade deste viés científico em voga nessa época, o qual pressupunha observar uma dada realidade com a primazia de representá-la no suporte fílmico, como uma tradução do texto em imagem.

O ator indígena em “Serras da Desordem”

O cineasta Andrea Tonacci, diretor de Serras da Desordem(2006) realiza, de longa data, formas de registro audiovisual a favor e sobre o universo indígena. Conversas no Maranhão, de 1981, consiste num exercício audiovisual, o qual o diretor classifica como um “documento” (no lugar de documentário) em alusão às reivindicações dos índios “Canela” (em relação à demarcação de terras e conflitos fundiários) presentes no filme (SATIKO, SZTUTMAN, ZEA: 2007). Em Serras, Tonacci reencena a diáspora do índio Carapiru (da etnia Awá Guajá) que, após escapar de uma chacina que vitima sua tribo e, durante sua fuga separar-se de seu filho, passa dez anos a vagar das serras amazônicas maranhenses até o sertão bahiano.

A proposta fílmica do diretor, que coincidentemente também levou 10 anos para ser realizada, era a de que o próprio Carapiru (contando com o seu consentimento), entre outros “personagens reais” que tivessem vivido os fatos narrados atuassem em uma reencenação desta narrativa (no caso de Carapirú, inclusive nas cenas da chacina e da separação de seu filho). O resultado é uma desordem-sincrética, que questiona o lugar comum destinado, na grande maioria dos casos, aos atores indígenas nas produções audiovisuais realizadas por não índios. Carapirú, no filme, é protagonista de sua própria história, na qual em conjunção com a poética narrativa sugerida pelo diretor, atua desordenadamente nos propondo um vasto sincretismo audiovisual. Entretanto, em “Serras da Desordem” e nos outros filmes de temática indígena de Tonacci encontramos uma autoria externa ao índio, operando como uma espécie de porta-voz que reafirma essa diferença e busca através dela estabelecer um processo reflexivo, como podemos interpretar nas palavras do próprio Tonacci, em resposta a uma pergunta sobre a falta de legendas em português nas falas indígenas de seu filme: “O filme é, na verdade, feito para nós, não é feito para eles, é feito para branco ver. E eu falo da gente. Eu não falo dos índios. Eu falo de um sentimento humano nosso, eles são os atores do filme. Existe um conhecimento anterior que é o que me permitiu chegar perto, e que fez com que a imagem pudesse transmitir tudo isso. Mas, na verdade, estou narrando uma leitura nossa da situação deles, que pensando bem não é muito diferente da nossa. No essencial a incomunicabilidade não ocorre.” (TONACCI in Revista do IEB, nº45 set.2007, entrevista concedida à SATIKO, SZTUTMAN, ZEA). Nessa compreensão evidencia-se uma comunicação que, a despeito da proposta sincrética, delimita e opta por um espaço específico de representação. A condição indígena, representada na história de Carapirú, funciona como um viés crítico ao olhar do não indígena.

Ao final do filme o letreiro nos avisa textualmente: “Os personagens principais deste filme foram interpretados pelas mesmas pessoas que viveram os fatos narrados”. Como uma espécie de “reordenação” da “desordem”, Tonacci esclarece sua estratégia narrativa com a ênfase no aspecto “ficcional”, portanto construção, e no aspecto documental num espaço híbrido audiovisual onde habitaram interpretações e reinterpretações de uma mesma história.

Representação polifônica: “Indígenas digitais, o filme”.

Indígenas digitiais é aquele índio que se apropria da ferramenta e faz o uso dela pra ajudar sua comunidade, pra estar aproximando a sua comunidade, dar voz a sua comunidade, pra apresentar tudo o que vem acontecendo dentro da sua comunidade, certo? Mas também tem um outro tipo de índio digital que é aquele que incentiva aqueles os mais novos a tá usando essas ferramentas, a tá aprendendo, que são os anciões, são os mais velhos, que acham que essas tecnologias não é pra eles, esse também é um índio digital, esse também tá incluído dentro desse mundo digital, desse mundo virtual, porque ele sabe a importância que é essa ferramenta dentro das nossas bases, ele sabe a importância dela, ele sabe que nós vamos usar pra apoiar nossa causa, pra tá fortalecendo a nossa luta. (jaborandy@indiosonline.org.br)

O excerto acima é uma transcrição da fala do índio cyber-identificado, na legenda do filme como jaborandy@indiosonline.org.br, personagem de Indígenas digitais, o filme(2010), de Sebastian Gerlic

6 . O documentário, que pode ser assistido no site www.indigenasdigitais.org, retrata o processo de indígenas de várias etnias do nordeste brasileiro produzindo conteúdo digital, organizando-se em redes colaborativas e, num viés reflexivo, opinando sobre a relação da tecnologia no contexto étnico do cotidiano dessas comunidades. Jaborandy fala sobre o que pensa ser um indígena digital, num enquadramento de câmera muito singular no documentário que sugere estar o personagem de frente a um espelho, em close, enquanto se pinta. A câmera como parte do espelho, se dirige ao índio que se pinta, aparentemente, para um “ritual” e ao mesmo tempo reflete, sobre si mesmo, e sobre sua condição como um indígena digital. Uma metáfora que também nos permite refletir que “se de um lado, nos últimos anos, as etnias indígenas se defendem e reafirmam as próprias especificidades através da tecnologia digital, de um outro, o digital indigeniza-se, tornando-se, na época contemporânea, pelo menos em parte, étnico e local, enquanto habitado pelas culturas nativas, as mesmas secularmente excluídas pela linguagem política e pelos demais meios de comunicação.” (Di Felice,2005, p. 295)

A despeito da autoria do filme ser de um não índio, o produto é fruto de um amplo processo dialógico de índios e não-índios envolvidos em ações afirmativas como a rede/portal “Índiosonline” e o projeto “Arco Digital”, que visam, através das ferramentas digitais e da internet enquanto recursos essenciais, promover ações de autodesenvolvimento e representatividade. Nessa perspectiva, o filme contribui e chama a atenção para a presença indígena na rede e para sua plena capacidade de adaptação cultural a essa tecnologia. Dentre várias interpretações profícuas e poéticas, a sugestão abordada no filme da metáfora do digital como um arco

7 , elemento tradicional da cultura indígena, expõe a relação do digital que se indigeniza e vice-versa. Nas palavras do índio, cyber-identificado como nhenety@indiosonline.org.br, “o computador, ele serve com um arco, porque o arco tradicional seria pra caçar, pescar, defender o povo e trazer a caça, trazer a pesca e trazer subsistência dos povos e o computador também faz isso, ele faz a caçada, né.. uma caçada virtual, a gente procuramos os ministérios, as ongs e enviamos projetos através da internet, a gente elaboramos projetos planejado com a comunidade, enviamos, e quando esses projetos, eles é aprovados e aplicado na comunidade como fonte de renda pro povo, então é como se fosse uma grande caçada e o computador conectado à internet é como se fosse um arco, que a gente denominamos ‘Arco Digital’” (2010). Assim como a presença étnica na rede, o filme aborda novas estratégias dos indígenas a partir do registro audiovisual de suas culturas e da divulgação deste material via rede, e como essas estratégias podem contribuir cultural e politicamente para os povos envolvidos. Aqui, embora a autoria de Sebastian não fique evidente, optando por um modelo pretensamente “objetivo”, claramente alicerçado por entrevistas que soam mais como testemunhos (por vezes quase retóricos), por outro lado, essa “invisibilidade” do autor chama atenção para a inserção do mesmo enquanto interlocutor no contexto do projeto sobre o qual versa o filme.




2. Trânsitos da representação: Cinemas indígenas, por indígenas.

Em ciências humanas em particular a coisa mais importante é o que, em nosso jargão, chamamos de “feedback”. Isto é, o que pensam as pessoas que estudamos. E, nesse campo, eu e alguns colegas de Nanterre criamos uma antropologia nova, chamada “antropologia compartilhada”. Essa antropologia compartilhada, para lhes dar um exemplo bobo é: Se perguntamos a um padre totêmico se ele acredita em Deus, a única possibilidade é que ele possa responder: ‘E você?’ É um ser humano que questiona outro ser humano. (ROUCH in Jean Rouch – Subvertendo Fronteiras)

Por autorrepresentação “entende-se que, por exemplo, a atual cultura maia dos Chiapas atual e aquela brasileira vivida pelos jovens favelados podem e devem ser representadas também por uma fotografia expressa por quem vive no interior do seu espaço vital” (Canevacci, 2009, 174). Não só no suporte fotográfico, como em todas as matrizes de linguagens, um processo autorrepresentativo polifônico, se constitui de uma abertura metodológica no qual se torna possível não só questionar o “sujeito” da ação como a compartilhar e redefinir seus objetivos. Entretanto, pensar nesse modelo de representação implica levantar questões, sobre “como pode o trabalho intelectual, artístico e pedagógico ‘lidar’ com o multiculturalismo sem defini-lo de modo simplista como um espaço onde apenas os latinos podem falar dos latinos, somente os afro-americanos podem falar sobre os afro- americanos e assim por diante, com cada grupo prisioneiro de sua diferença reificada?” (Shohat, Stam, 2006). Vislumbramos uma possibilidade que se apresenta nos trânsitos de representação, nos quais seja possível, através da ênfase dialógica, repensar as autorias envolvidas no processo. “No corpo desse prefixo – auto – há um sujeito que não é mais inscritível em uma cultura de pertencimento compacto, compreensível graças a intervenção externa do etnógrafo. É a própria internalidade do sujeito à sua cultura que libera novos módulos narrativos” (Canevacci, 2009, 174). A possibilidade de articulação entre texto, imagem, som, movimento, interatividade, etc, em ambientes hipermidiáticos aponta para possibilidades transitivas de representação na comunicação digital. O que antes se convencionou delimitar numa relação objetiva, ou seja, sustentada pela determinação de um sujeito que observa e elabora hipóteses sobre um objeto, passa a ser redefinida quando a ênfase dialógica do processo deixa em suspensão essas categorias, elaborando um diferente trânsito no qual, “junto de, ao lado, e, frequentemente, contra esse discurso coloca-se com força expressiva e conceitual sempre maiores, [...] os modos, também eles plurais, por meio do quais aqueles que durante muito tempo foram tratados apenas enquanto objetos de estudo revelam-se sujeitos que interpretam, em primeiro lugar, si próprios e, depois, também a cultura do eventual pesquisador externo” (p. 171).

TSÕ’REHIPÃRI: Representação dialógica e reflexividade no cinema xavante.

A introdução do vídeo desencadeia nestas comunidades um processo de reflexão sobre a imagem em que os índios são, simultaneamente, sujeito e objeto desta reflexão, o que não era possível com o texto, que jamais despertou grande interesse entre eles. (CAIUBY: 2000)

Divino Tserewahú Tsereptsé, é xavante da aldeia de Sangradouro. Iniciou sua formação como realizador audiovisual indígena através do projeto Vídeo na Aldeias

8 em 1990. Desde então, realizou diversos filmes sobre importantes rituais de sua cultura e viajou o mundo para mostrar suas produções. Seu filme Tsö’rehipãri, no português “Sangradouro”, realizado em parceria com Tiago Campo Tôrres e Amandine Goisbault (ambos do Video nas Aldeias), foi sua última produção dentro deste importante projeto. Nele, Divino resgata a história da chegada dos xavantes à missão salesiana de Sangradouro. Para tanto, recorre desde o relato dos anciãos, do padre da missão, assim como um diálogo com representações desse momento presentes em outros filmes ora demonstrando visualmente o que dizem os anciãos 9 , ora utilizando essa imagens como um contraponto crítico 10 . Nesse contraponto crítico, aspecto evidente da reflexividade que permeia o filme, Divino recorre ao diálogo com os próprios xavantes sobre sua cultura, sobre a influência da cultura do waradzu (branco), entre outas questões pertinentes ao cotidiano da comunidade. A cena inicial do filme é emblemática dessa proposta: Numa elipse, passamos do enquadramento do filme etnográfico 11 em pb de Genil Vasconcelos, que sobrevoa do avião uma aldeia xavante e, na mesma perspectiva, a imagem colorida do vídeo de Divino, com uma distância temporal de exatos 60 anos 12 , se fundindo à imagem. A trilha não diegética do filme de Genil Vasconcelos vai estranhamente se fundindo a uma música bastante popular: Eyes of the Tiger, tema do filme Rocky Balboa. Nesse plano, somos recebidos na Aldeia xavante Sangradouro através de Divino que, com um aceno de boas vindas, surge em um plano geral ao lado da caixa de som onde a música é executada. As cenas seguintes mostram um carro na aldeia, uma partida de futebol onde também chama a atenção, ao fundo, uma antena parabólica e, por fim, Divino caminhando com sua câmera. Signos do “progresso” que são mostrados por Divino por fazerem parte do cotidiano da aldeia.

Na relação do xavante com a imagem e com o “ser visto por si próprio”, algo já corriqueiro em Sangradouro graças aos frequentes trabalhos de Divino, presenciamos diferentes reações da comunidade diante da câmera. Quando Divino diz para uma criança “Menino, vem aqui que quero filmar você”, esta lhe responde “Não, você vai roubar minha imagem”. Em outra situação, quando uma senhora que pinta seu marido para um ritual é filmada, ela diz: “A minha imagem nunca vai acabar depois que eu morrer”. Polifonia reflexiva na qual a presença da câmera captura tanto a cautela da criança temerosa, quanto o entusiasmo da senhora sobre sua própria imagem. Essas duas percepções opostas exemplificam duas diferentes perspectivas, sendo a primeira que os xavantes, muitas vezes, foram registrados e não puderam se ver - uma perspectiva da “imagem roubada” -, e uma segunda possibilidade, mais recente, na qual não só podem se ver como discutir o uso de suas imagens - uma perspectiva da persistência e, portanto, imanência da imagem.

A reflexividade é exercitada desde as cenas iniciais do filme, quando a aldeia está reunida assistindo ao próprio filme Tsö’rehipãri, ainda inacabado, enquanto opina sobre as cenas e a montagem. Um método que, de imediato, nos remete à “Crônica de um verão”, de 1960, de Jean Rouch e Edgar Morin, em que os protagonistas do filme discutem durante a projeção do próprio, as relações criadas nos registros e que fazem parte do filme. Da antropologia compartilhada de Rouch à autorrepresentação polifônica, momentos de produção partilhada de conhecimento.

2.2 Hipermídia “Boé Eru Kurireu”, trânsitos de representação.

Meu nome é Paulinho Ecerae Kadojeba. Hoje sou cinegrafista. Antigamente nossa cultura foi registrada pelo trabalho de não-índios. Eles fizeram muitas filmagens, fotografias e livros a partir de sua visão e interpretação que conseguiram dar com base em suas pesquisas, e foi com essa visão que fizeram a divulgação de nossas práticas culturais. Atualmente isso mudou. Somos nós os Bororo que estamos atuando nesse trabalho, apresentando uma versão a partir de quem vive na prática a cultura tradicional. Parte dessa cultura vamos mostrar nesse vídeo. (KADOJEBA in “Paulinho Ecerae Kadojeba por ele mesmo.” Hipermídia Boe Ero Kurireu, 2009).

Com essas palavras, originalmente em língua bororo e com legendas em português, o bororo Paulinho Ecerae Kadojeba, introduz ao espectador a sua versão de um ritual fúnebre bororo, evento de extrema importância para a etnia.

O meio pelo qual temos acesso ao documentário de Paulinho é a hipermídia (que leva o mesmo nome do filme) Boe Eru Kurireu, no português “A Grande Tradição Bororo”. A produção do documentário é uma construção colaborativa sendo a montagem assinada pelo xavante Divino Tserewahú Tserepsé. No contato entre Paulinho e Divino, chama ainda mais atenção o fato de que os bororo e os xavante frequentemente - guardadas as proporções e os momentos históricos – foram (e em alguns casos ainda são) tidos como etnias inimigas. Divino e Paulinho dialogam no produto audiovisual, respeitando suas diferenças e sugerindo um interessante processo interétnico. Certa vez Divino me contou que, depois de realizar a montagem, decidiu exibir o filme do amigo bororo em sua aldeia xavante. De acordo com ele, sua comunidade passou então a valorizar e a ficar admirada com o até então desconhecido ritual, permitindo novos fluxos e intercâmbios entre os realizadores indígenas, assim como entre os indígenas das duas etnias.

Ao longo do processo de contato interétnico, diversas vezes os funerais bororos foram, como no caso do filme “Rituaes e Festas Bororo”, representados numa lógica em que o registro negou ou mesmo suprimiu a voz da alteridade. A possibilidade, no Brasil, de uma representação realizada a partir dos próprios indígenas começou a se tornar viável, sobretudo, com trabalhos desenvolvidos por instituições como CTI (Centro de Trabalho Indigenista) e o projeto Vídeo nas Aldeias (CAIUBY, 2000).

Um segundo aspecto bastante relevante em “Boé Eru Kurireu” é a crítica de Paulinho aos modelos de representação dos brado (não indígenas), no caso específico da emissora de televisão Rede Globo e do programa Fantástico. Trata-se de um exercício reflexivo que contrapõe na narrativa a visão bororo de seu ritual e a versão realizada pela emissora de televisão. Entretanto, em seu documentário, Paulinho utiliza uma linguagem que amplamente alicerçou o modelo de representação dos não índios: A entrevista e a voz off, o que nos permite refletir, em um certo sentido, que “quando os cineastas são índios, índios somos nós” (CAIUBY, 2000). É com o mesmo método de seus “detratores” que Paulinho vai conduzir sua narrativa, embora tomando o cuidado necessário, em determinadas etapas do ritual, que a situação exige aos olhos de um bororo. Ao contrário do que fez a emissora - que exibiu imagens proibidas às mulheres em cadeia nacional - Paulinho utiliza no filme uma textura que não permite que estas imagens sejam perfeitamente visualizadas, não alterando entretanto em nada o som, uma tradução audiovisual da lógica inerente ao ritual. O filme de Paulinho busca de forma didática demonstrar ao espectador uma versão diferente do evento. Lida, deste modo, com questões muito complexas como, na própria crítica à emissora de TV, o fato de se ao longo do contato com os missionários salesianos houve ou não a proibição e a prática do ritual fúnebre. Paulinho reforça sua versão embasada no depoimento de alguns interlocutores eleitos que reafirmam o mesmo discurso, algo que porém poderia também ser questionado a partir de outros discursos.

A ruptura propiciada por autorias coletivas na produção audiovisual (e consequentemente na produção de conhecimento) apresenta uma alternativa à assimetria tradicional das representações monológicas. “Nos antigos filmes etnográficos, por exemplo, vozes confiantes e “científicas” falavam a “verdade” sobre os povos nativos, impossibilitados de replicar; já as novas produções buscam uma “prática participativa”, uma “antropologia dialógica”, uma “distância reflexiva” e uma “filmagem interativa”. (SHOHAT, STAM, 2006, p. 67)

A hipermídia Boé Ero Kurireu nos reforça que “a forma viva e dialógica das culturas nativas está hoje ligada, não mais exclusivamente às representações produzidas pelos antropólogos, mas às novas formas híbridas, auto-representativas da tecnologia digital e das demais formas tecno-comunicativas.” (DI FELICE, 2005, p. 295). Seu processo consiste numa produção de conhecimento partilhado, como dito, em que hibridizaram-se no ambiente digital, um documentário bororo, uma pesquisa acadêmica e um conceito inerente ao processo. Essa forma reticular de produzir conhecimento questiona a estrutura rígida e formal do método científico que eleva ao “autor” o protagonismo de um único e “legítimo” texto (no caso, filme). Em um mesmo ambiente habitam vozes polifônicas e em diferentes níveis taxionômicos, discursivos e estéticos (como nesse caso em que o texto acadêmico continua em sua matriz textual e o produto indígena é o filme).

Por isso, um pesquisador não pode permanecer tranquilo e imóvel em suas passadas certezas: iniciou-se o tempo fantástico e fantasioso em direção a modalidades inventivas que permitam desenvolver pesquisas diferentes, para afirmar polifonias de linguagens, estilos, metodologias, imagens e sons, a serem elaborados – é desejável – junto das outras irredutíveis subjetividades. (CANEVACCI, 2009, p. 172)



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Filmes

GERLIC, Sebastian. Indígenas digitais, o filme. Direção de Sebatian Gerlic. Disponível em < http://www.vimeo.com/11283052 >, Acessado em: 15/03/2011.

KADOJEBA, Paulinho. Boé Eru Kurireu (A Grande Tradição Bororo). [Filme-vídeo] Direção de Paulinho Ecerae Kadojeba. DVD, 27 minutos. color. som.

REIS, Luiz Thomaz. Rituaes e Festas Bororo. [Filme-vídeo]. Direção de Major Luiz Thomaz Reis. DVD, pb. mudo.

TONACCI, Andrea. Serras da Desordem. [Filme-vídeo]. Direção de Andrea Tonacci. DVD, color., som.

TSEREWAHÚ, Divino. TSÖ’REHIPÃRI. [Filme-vídeo]. Direção de Divino Tserewahú, Tiago Campos Tôrres e Amandine Goisbault