Cena do filme "Estudo em Vermelho" do coletivo Deslumbramento

A irreverência como política

Fábio Ramalho

Parece que essa história já foi contada muitas vezes, mas eu a conheci primeiro por meio de uma entrevista de Néstor Perlongher. Fidel Castro teria dito que a revolução não precisava de “peluqueros”, ao que o escritor cubano Severo Sarduy respondeu: “lo primero para hacer la revolución es ir bien vestida”. Vez por outra me pego pensando que a lição dessa frase está longe de ter esgotada a sua relevância, em especial no que diz respeito ao uso que ela faz do deboche. Para captar a boutade, é necessário tomar a ironia e a calculada frivolidade do escritor não apenas como táticas para desarmar um preconceito, mas como a face visível de todo um programa, ou – para evitar palavra tão ordeira e, por isso mesmo, inadequada – como a exposição de uma postura para a qual o artifício, o humor e a persistência na leveza são, talvez, os valores mais caros e inegociáveis.

Dos muitos enfoques possíveis de serem mobilizados para responder ao convite que me foi feito, o de discorrer um pouco sobre a produção audiovisual do Surto & Deslumbramento, eu escolho o caminho da política. Não é tanto que ela constitua a preocupação de base de todos os integrantes, muito menos a razão de ser do próprio coletivo – trata-se, afinal, de generalizações que eu não quero nem poderia fazer, ainda mais quando tomamos, em suas particularidades, cada um dos projetos até então realizados. Porém, é no político que reside, acredito, o maior potencial de discordância e de conflito a ser esmiuçado em relação à produção audiovisual contemporânea, e não vejo outro motivo para escrever esse texto, senão para levantar algumas dessas divergências.

Mais do que sobre o coletivo, busco falar a partir de alguns de seus filmes e intervenções, fazendo-os dialogar com referências que não necessariamente coincidem com as dos demais integrantes. Tais obras têm me ajudado a acessar idéias e a reformular inquietações pessoais de uma maneira que não seria possível a partir de outros meios, que não o da convivência dialogada e tornada possível antes, durante e depois de cada projeto.

A forma-protesto

Tornou-se uma piada recorrente caracterizar as mobilizações que acontecem em Buenos Aires como a conversão paradoxal do disruptivo em corriqueiro. A lógica que mina a eficácia da manifestação política, nesse caso, parece razoavelmente clara: se todo dia há protesto, se variados grupos se revezam incessantemente em frente à Casa Rosada e se chegam mesmo a estabelecer um tipo de alternância na distribuição de horários e dias da semana, o recurso se esgota. É possível que Martín Rejtman já tivesse isto em mente quando incluiu uma cena em Silvia Prieto (1999), seu segundo longa-metragem, na qual um grupo de mulheres está sentado no chão de uma praça segurando, sem nenhum vigor, cartazes com palavras de ordem a favor de melhores condições de trabalho, ao mesmo tempo em que esperam tediosamente o momento (definido sem muito critério) no qual a manifestação pode, por fim, dar-se por encerrada.

A trivialização do protesto como acontecimento público, por um lado, e a sua conversão num ato esvaziado, desprovido de sentido, por outro, são duas maneiras possíveis de chamar a atenção para o fato de que o protesto é uma forma da política e, como tal, está sujeita ao esgotamento e à necessidade de renovação. Falo em forma, aqui, no seu sentido precisamente estético: como disposição dos corpos de modo a intervir numa certa ordem do sensível já cristalizada nos espaços urbanos e, assim, perturbá-la.

Na época em que o coletivo foi convidado a propor uma ação durante o II Ocupe Estelita

1 , em 2013, não havia me ocorrido a conexão com esse aspecto da política argentina – pela qual eu tenho um antigo fascínio –, nem com o filme de Rejtman, em particular. E, no entanto, é exatamente o ímpeto de realçar uma qualidade paródica que seria de certo modo intrínseca às manifestações, tomando para tanto a repetição de algumas de suas configurações tradicionais, o aspecto que me parece mais interessante na intervenção proposta pelo Surto & Deslumbramento no contexto recifense.

O Estúdio Fotográfico

2 teve uma inflexão simultaneamente irônica e autoirônica. Irônica porque debochava da denominação rasa com que os segmentos mais reacionários da mídia desqualificavam o movimento do Ocupe, a saber, com o epíteto de “ativistas de sofá”. Não era incomum que se levantasse a suspeita de que tudo não passava de um hype orientado por motivações fúteis, tais como posar de politizado nas redes sociais, obliterar a seriedade da pauta política com a valorização da imagem pessoal, priorizar a necessidade de exibição narcisista e, por fim, buscar a autopromoção entre pares, em detrimento do que realmente importava: o suposto avanço da cidade rumo ao progresso.

Contrariando essa corrente pretensamente crítica, mas que mal disfarçava o seu moralismo, no Estúdio Fotográfico os passantes que visitaram o Cais José Estelita puderam fazer seu “book de protesto” sem culpa nem constrangimentos. Foi-lhes concedida, por meio de uma arara com vestimentas e adereços, além de alguns materiais gráficos, a possibilidade de escolher, dentre a gama de momentos históricos e pautas políticas disponíveis, aquele tema que mais lhes atraísse: Anos Rebeldes, Diretas já, Caras Pintadas, Fora Feliciano, Cansei, dentre outros. Vale ressaltar que a confecção de cartazes personalizados acabou sendo o grande sucesso da ação, resultando numa profusão de frases e palavras de ordem que iam da singeleza ao escracho.

As fotografias produzidas foram posteriormente publicadas na página do coletivo no Facebook e também reunidas num Tumblr, como incentivo descarado para que as pessoas realizassem plenamente o seu ativismo de sofá – curtindo, compartilhando e exibindo(-se) – ou, pelo contrário, para que ostentassem as provas irrefutáveis de que haviam saído do aconchego de seus lares para “ir às ruas”. Tratou-se, enfim, de desmoralizar a dicotomia falida entre o presencial e o virtual, observando que a crença no ambiente das redes como algo menos “real”, ou seja, menos pleno de conseqüências e efeitos concretos sobre o mundo, batia de frente com a compreensão de que um protesto é acima de tudo um modo de fazer-se visível.

Mas havia também, como dito, uma autoironia, pois não deixávamos de perceber, na própria rede que articulou o Ocupe, a recorrência de alguns discursos e posicionamentos – sobretudo aqueles orientados pelo imperativo da seriedade – que nos pareciam equivocados e, por que não dizer, às vezes francamente conservadores e datados. Tais ressalvas de nossa parte, bem como a falta de uma participação mais assídua no movimento, tornavam legítima a pergunta sobre qual era exatamente o nosso lugar ali. Seria possível dizer, portanto, que a relação do grupo com o movimento era ambivalente. O Estúdio Fotográfico, em suma, foi uma forma de expressar essa ambivalência e ao mesmo tempo canalizar o humor (ausente, aliás, na quase totalidade das outras intervenções propostas)

3 para a autoconsciência em relação à compreensão do acontecimento como imagem a ser veiculada e como estilização de um conjunto de gestos com vistas à composição de uma cena pública.

Que esse não era de modo algum, porém, o entendimento corrente, dentro e fora do movimento, ficou claro algum tempo depois quando, já no contexto do acampamento do Ocupe, houve uma repercussão bastante negativa ao ensaio fotográfico de outro grupo, o Coletivo Além

4 . Centrado numa reflexão sobre modos de vida possíveis a partir das relações propostas entre corpo nu e paisagem, o ensaio investiu no território ocupado e suas estruturas em vias de demolição. Lembro que não faltaram pessoas amigas, conhecidas, comentaristas das redes sociais, integrantes do movimento, simpatizantes ou ferrenhos detratores que, dos mais diversos pontos desse amplo espectro político, não convergissem para a opinião de que um ensaio que envolvesse nudez, naquele momento de acirramento das disputas em torno da legitimidade da ocupação, era algo entre degradante e desnecessário, mas de todo modo impertinente.

Ao fim e ao cabo, “peluqueros”, “nudistas”, “performers”, “estetas” e outras denominações do tipo parecem despontar com certa freqüência como aquilo que é considerado acessório na política. Na maior parte das vezes, no entanto, apenas um descuido da fala permite que tais figuras sejam enquadradas explicitamente como os elementos secundários que um capricho inconveniente faria passar ao primeiro plano das reivindicações. As posições de sujeito e suas respectivas formas de expressão costumam ser distribuídas segundo graus de pertinência que são definidos de maneira mais velada, mas não raramente balizados pelos critérios da seriedade e do bom tom.

Viadagens em loop

Quando a equipe do Porta Curtas nos pediu que criássemos uma vinheta apresentando o coletivo e os filmes que seriam disponibilizados para o público no seu site, foi consenso que a tarefa não seria muito empolgante se, de fato, ela se restringisse a cumprir o objetivo de fornecer alguns dados básicos e discorrer sobre os vídeos. Insistir numa linha própria de concepção e ainda assim “entregar a encomenda” significou, em certa medida, incorporar também nessa peça de divulgação alguns elementos que já eram parte integrante dos filmes e, ao mesmo tempo, exagerar o caráter informativo da vinheta. À pergunta de um “popular” assolado pela aflição de não saber ainda O que é surto & Deslumbramento?, recitamos em forma de jogral uma exposição didática sobre o que vinha a ser o coletivo. A afetação das roupas, da música, do texto, das poses e do décor foi tanta que, ao final da filmagem, um de nós descreveu o resultado como uma espécie de versão piorada de como um imaginário médio, bem ao estilo Zorra Total, costumava representar a bicha afeminada. Se bem me lembro, essa não tinha sido a intenção inicial declarada, mas, depois de verbalizado o veredicto, o grupo concluiu que era isso mesmo e deu a tarefa por encerrada.

Falo dessa vinheta porque nela se percebe, de maneira patente, a importância que o coletivo atribui ao artifício. E digo isso não porque tenhamos forçado algo que não tínhamos. (Pelo contrário, lembro que uma piada recorrente após a filmagem foi que um ou outro dos integrantes “nem entrou no personagem”, “acabou sendo ele mesmo”). O exagero, afinal, consiste justamente em levar ao limite aquilo que já se é. E a pinta, como se sabe, não é só um traço de personalidade: ela é também – e talvez, principalmente – um comportamento de grupo. Ela se retroalimenta. Ela se dissemina via contágio. Ela se multiplica em escala exponencial. Dê a uma bicha um feedback positivo e descubra que a estratosfera é o limite.

Repetição inesgotável de bordões, compartilhamento de referências, hipervalorização de minúcias apreendidas na cultura midiática ou captadas dos círculos próximos de convívio: tudo entra numa relação obsessiva de reiteração-variação que constitui quase um método de trabalho. E se descrevo esse processo sem o constrangimento da autorreferência é porque sei que ele não é exclusivo do grupo, mas um modo de se relacionar com imagens, artefatos e fragmentos de discursos que pode, felizmente, realizar-se em toda sua glória nisso que já foi chamado de cultura da internet, mas que hoje é apenas um outro nome para a vida.

No que diz respeito ao coletivo, especificamente, eu diria que a pinta ostensiva às vezes me parece quase uma pirraça, justamente porque descamba para o estereótipo, para o clichê, para a afetação – para tudo aquilo que é, enfim, o reverso da seriedade de que eu falava antes. A esse respeito, é possível dizer que Mama (2012), como primeiro filme, deu o tom de muito do que viria depois. O curta de André Antônio, que surge de uma obsessão com a música homônima de Valesca Popozuda e teve como ponto de partida a idéia de fazer uma espécie de videoclipe-homenagem, acabou se realizando como uma conversa filmada sobre a relação de integrantes do coletivo com a canção. E me parece que isso se deu menos pelo interesse na metalinguagem do que pela impossibilidade de barrar o acúmulo na cadeia de referências e associações que viriam a compor a concepção visual desse hipotético videoclipe.

No fim das contas, o curta acabou sendo sobre um monte de outras coisas: desde os critérios para aquilo que constitui um objeto político (pode uma música escrachada ser tomada, para fins de um debate, em pé de igualdade com proposições militantes articuladas pela via da argumentação ponderada?) até os desníveis que marcam a atribuição de valor estético aos produtos culturais, de acordo com suas diversas modalidades de registro e circulação. Qual a diferença de fundo entre uma imagem concebida para o cinema e outra para ser veiculada no youtube? Como é que os sujeitos que, em seu cotidiano, travam contato com múltiplos regimes visuais resolvem as tensões entre categorias de diferenciação estética? O que está em jogo quando se opta por uma lógica de rigorosa separação ou, inversamente, quando se prioriza a contaminação de registros e o entrecruzamento?

Junto a estas, percebe-se que há ainda outra questão, talvez mais prosaica, mas nem por isso menos incômoda, que reaparece nas ideias formuladas ao longo da conversa na grama: até que ponto os hábitos de consumo cultural das pessoas são ostentados como credenciais que as legitimam enquanto sujeitos politizados ou, pelo contrário, tomados como elementos que desabonariam o seu comprometimento com a crítica? O caminho seguido para encaminhar tais questões é quase sempre o do deboche: “me deixe com minha novela e saia daqui” e “até as 8 da noite eu tô tratando da corrupção, depois das 8 é hora da novela” são falas que, se podem soar pueris, não deixam de sugerir, com sua malícia, um entendimento mais contundente: o de que o rechaço a certas formas culturais se justifica mais pelo preconceito contra o prazer frívolo que elas possibilitam do que, propriamente, por constituírem um empecilho para a atitude crítica.

Vale lembrar, aliás, que nos últimos dias se multiplicaram as objeções aos espectadores que “até ontem falavam que a Globo era golpista e hoje se entusiasmam com o beijo de duas velhas lésbicas na novela” – um tipo de unidimensionalidade na percepção da cultura hegemônica que faria Antonio Gramsci corar. Nesse contexto, ainda é pertinente se contrapor a certo raciocínio que ignora a possibilidade, numa produção tão multifacetada e que envolve tantos diferentes agentes, como é o caso da indústria do entretenimento, de que mesmo nos segmentos mais reacionários, a saber, nas grandes emissoras de televisão, haja espaço para a existência de fissuras e contradições nas proposições estéticas veiculadas. Vale observar ainda que, muitas vezes, as mesmas pessoas responsáveis pelo enunciado acima não costumam destinar ao cinema hollywoodiano, à cultura pop ou ao jornalismo impresso o mesmo tratamento tão unilateral e homogeneizante.

Mais do que pretender-se isento desses modos de distinção pelo gosto, creio que o que sobressai nesse filme em particular e, de maneira mais ampla, no que o coletivo tem feito até o momento, é uma impaciência diante da falta de nuances no modo como os fenômenos midiáticos são apreendidos em certos discursos em torno da cultura audiovisual. Nesse sentido, Mama tem a intransigência que um filme com o seu grau de descompromisso (o que não quer dizer, de modo algum, despretensão) pode permitir. Falo em intransigência tanto em relação à sua duração e verborragia – que poderiam muito bem ser consideradas inadequadas para a plataforma onde o filme foi lançado desde o início, o youtube – como também na coexistência que ele opera entre dois regimes de imagem muito distintos: o registro da conversa na grama e os planos contemplativos de Pedro Neves ao longo de uma madrugada. Aliás, se há algo “sério” no filme de André Antônio é a sua convicção de que não há nada de absurdo ou implausível na conjunção que ele propõe entre Valesca Popozuda e Philippe Garrel; na proposição de uma constelação possível de elementos cuja complexidade estética vale a pena investigar.

Evadir a literalidade

Estudo em vermelho (2013), de Chico Lacerda, também empreende uma desierarquização entre múltiplas modalidades de registro, formas culturais e linguagens, dessa vez não apenas pelo diálogo próximo com a música pop e o videoclipe, mas também pela apropriação direta de imagens, que aparecem no curta-metragem articuladas por um efeito de zapping. Tais imagens, além do mais, remetem a diferentes regimes de codificação do corpo e potencialidades expressivas que existem através e apesar de tais códigos – aspecto que, aliás, as imagens partilham com os diversos textos lidos ao longo do filme.

Não bastasse o fato de que esse traço compartilhado – o da variação nas formas de “enquadrar” o corpo – já fizesse de cada imagem um objeto relevante para pensar a política, caberia ressaltar o evidente desnível não somente no status e nos tipos de legitimação alcançados pelas diferentes obras, mas também no que se refere às posições de sujeito e aos graus de negociação acionados pela presença de cada uma daquelas figuras: um astronauta do filme de Kubrick, a drag queen Sharon Needles, o humorista Didi Mocó, a diva da internet Leona assassina vingativa, dentre outras. No centro de tudo, no entanto, encontramos uma referência-guia: o vídeo da música Wuthering Heights, de Kate Bush.

Em Estudo em Vermelho não há discurso verbal articulado ou exposição argumentativa que sustente algo como a sua proposição sobre o corpo, em meio às muitas codificações apresentadas textualmente: a da instrução militar, a de um espiritualismo de banca de revista, a de uma cultura corporativa cheia de platitudes sociais, a da experiência estética de ruptura proporcionada pela arte... Sua perspectiva é antes expressa pelo ímpeto de realizar a antiga vontade de levar adiante uma obsessão pessoal ao ponto de transformá-la em filme; de refazer a antológica performance da cantora e filmar o resultado, com todas as evidentes diferenças ou disparidades que este carrega: na evidência do corpo masculino e do bigode emulando a hiperfeminilidade da cantora, na roupa francamente precária e nos movimentos desajeitados que contrastam com a demonstração de graça, coordenação motora e elasticidade nos passos de dança exagerados da estrela.

Se o juízo de valor que toma a cultura de massa como instância da repetição e do esgotamento é enunciado explicitamente por um dos textos, a vivacidade e o entusiasmo da relação inventiva com a cultura pop, em contrapartida, aparecem inscritos no corpo que dança. O filme não deixa de demarcar assim um tipo de consumo cultural, um gosto e permite entrever certos traços geracionais. Ainda assim, para aqueles que porventura não reconheçam as principais referências citadas, acredito que é possível perceber o quanto há, ali, de intensidade e paixão na relação com certos objetos estéticos. Por que esses objetos e essa relação seriam tomados como menores em face da “grande arte”?

Talvez ainda mais opaco, no que diz respeito à ausência de uma perspectiva centralizadora, seja o filme Casa Forte (2014), de Rodrigo Almeida. Nele, a renúncia à demarcação de um ponto de vista ou lugar de fala que fosse capaz de organizar, por assim dizer, a percepção do filme, conferindo-lhe uma tomada de posição direta e inequívoca, coexiste com a abordagem de uma questão particularmente delicada, a do fetiche pelo corpo negro na cultura homossexual masculina. O viés de classe, a herança colonial, os traços do passado na geografia urbana, os jogos sexuais e mesmo a sugestão de uma possibilidade de agência por parte do indivíduo sobre quem recai a marca do estereótipo, mediante a manipulação amorosa, são todas camadas que compõem um olhar complexo e multifacetado sobre a questão. Cedo, então, o/a espectador/a precisa abdicar da demanda, ainda muito agraciada por certa concepção estreita de cinema político, por uma ancoragem que ateste a dimensão “conscientizadora” e clarifique a orientação crítica da obra.

O risco recai sobre quem vê, desprovido do balizamento concedido por uma lógica militante e/ou moral capaz de guiar sua leitura, mas também sobre o realizador, que se expõe à chance sempre plausível de que, na ausência de uma demarcação explícita para o seu lugar, este seja presumido pelo público, motivado pela especulação insistente: afinal, de onde nos fala o diretor? Trata-se, no fim das contas, de um hábito do qual poucos estão isentos, de modo que eu mesmo me percebi por diversas vezes aflito enquanto (re)via o filme, canalizando a ansiedade despertada pelo tema espinhoso para a preocupação acerca das possíveis atribuições de intenção operadas em cada contexto de espectatorialidade e de acordo com diversos segmentos de público.

Talvez se trate mais de um sentimento pessoal do que de um dado empírico, mas me parece que há uma predominância da literalidade do discurso político no audiovisual brasileiro contemporâneo – e talvez não apenas no audiovisual – que se choca com a aposta incerta na ambigüidade e em sua abertura. O sentido literal investe numa separação mais bem demarcada entre sujeito e objeto; na polarização de posições dentro de um espectro político complexo; na transparência do objeto-filme como veículo de uma mensagem ou posicionamento de ordem político-social; e, não menos importante, na crença da continuidade entre a exposição de uma ideia e a sua “correta” assimilação pelo público, de modo que tal exposição possa cumprir seu objetivo de endossar a defesa da perspectiva assumida pela obra.

Se tal estratégia, porém, tem seus ganhos, ela padece por outro lado de uma ameaça que é ao menos tão indesejada quanto o mal-entendido: a de criar uma distância segura a partir da qual torna-se possível garantir uma comunhão de opiniões acerca de um determinado problema, mas que, por isso mesmo, resulta numa espécie de redundância. Sabemos, afinal, que os filmes costumam ter recortes de público mais ou menos restritos – por questões de distribuição, de afinidade estética, de perfis de público atrelados a contextos institucionais de exibição –, de modo que não é implausível supor que mesmo perspectivas políticas minoritárias podem alcançar um elevado grau de consenso localizado, quando balizadas por mecanismos seguros de decodificação das proposições veiculadas pela obra.

A ambigüidade, por sua vez, não busca minimizar os ruídos. Ela pode, pelo contrário, atuar como catalisadora das contradições e mesmo, por que não dizer, dos discursos introjetados, dos desejos equívocos. Em seu limite, a forma ambígua pode levar um germe de crise à comunidade dos que se aglutinam em torno de um determinado filme, e isso me parece politicamente produtivo. Não pretendo dizer que os trabalhos aqui brevemente analisados chegam tão longe, mas simplesmente defender que o apreço pelo que há de artificial, supercodificado e ambíguo numa imagem, numa fala, num signo – irônico, paródico, malicioso, de duplo sentido – é algo que tais obras têm me ajudado a formular. Igualmente, essas experiências me ajudam a perceber aquilo que me parece menos interessante na produção e circulação de imagens hoje. Seriedade, bom gosto e literalidade: três ocorrências que retornam com freqüência nos juízos de valor sobre o que é ou não relevante nos mundos da cultura e da política – e, em particular, no universo do audiovisual – e para as quais o humor se apresenta, acredito, como um produtivo e desejado antídoto.

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