Imagem da autora tomando um Floral de Bach

A difícil relação entre ver/ouvir

Isabel Carneiro

Isabel Carneiro

Sabe-se que a relação som e imagem tem uma mesma natureza, o feixe de onda. O que as distingue é a frequência com que são emitidas e captadas. As frequências sonoras cada vez mais rápidas entram pelo campo eletromagnético, se transformam em ondas de rádio, de radar, até as ondas luminosas visíveis e invisíveis (do infravermelho ao espectro de cores, seguindo depois pelo ultravioleta, e daí aos raios x, aos raios gama, aos raios cósmicos). Essa semelhança de natureza física do som e da imagem aproxima conceitualmente as duas linguagens.

A relação ver/ouvir acontece, até mesmo, na sua condição física. Rodolfo Caesar no texto O som da imagem

1 afirma que todo o som é ou gera uma imagem e cita o termo i-son (imagem do som), de François Bayle, criado para designar uma forma de apreensão do som que depende do suporte físico em que é reproduzido. Ele dá o exemplo de que quando ouvimos um som de violão num alto-falante, escutamos o som do violão acrescido da reprodução eletroeletrônica do violão, sendo necessária a construção da imagem do som do violão a partir de seu suporte físico. Significa que, quando ouvimos um som qualquer, precisamos construir a imagem desse som. Para Caesar, diferente de Bayle, a imagem do som independe de um suporte físico, pois todo som é gerado por uma imagem. O i-son (a imagem do som) é a transposição da condição física do som.

O i-son é, portanto, entendido como dependente da instância concreta no sentido schaefferiano, de algo inserido no dispositivo das artes-relé. Comparando-a com a imagem visível na superfície do suporte fotográfico, o conceito de i-son presta-se para designar sons escutados graças à reprodução por auto-falantes, subtraídos de seu espaço original de criação, e (eventualmente, também do seu tempo) entendendo-se “reprodução” como algo diferente de uma mera repetição. O i-son de um som de violão que porventura escutarmos resulta do encontro entre nossos sentidos da escuta e a amplificação eletro-eletrônica do som de um violão- para Bayle necessariamente fixado num suporte.

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Ainda segundo Caesar o problema em transformar som em imagem é que o som não tem uma fixação tátil, ele sempre sofre um anteparo, nunca é a imagem do som em si. E que muito recentemente, com a produção fonográfica é que o status entre ver/ouvir pôde ser colocado em comparação.

Segundo Michel Chion em sua tese Audio-vision diz que a música se constituiu num espetáculo audiovisual, que imagens sempre fizeram parte da prática, difusão e percepção da música. A música teve embrionariamente relação com a imagem mesmo na época das músicas de concerto quando o concertista se apresentava em público, existia o figurino, o cenário,... E que quando a música começou a ser gravada (música acusmática), a imaginação constituiria a parte visual da música. Chion faz uma distinção importante do que seria duas formas de hibridação entre som e imagem, uma que se chama audio-vision, que seria própria dos filmes em que a música entra para ampliar o sentido da imagem, pois a imagem é que prevalece. E o visionaudition, em que é a partir da música que as imagens são geradas, pois é a música que prevalece.

Por “audio-vision” ele [Chion] designa um tipo de percepção própria do cinema e da televisão, onde a escuta influencia a visão, onde o som acrescenta a todo momento uma série de efeitos, de sensações, de significações que, por um fenômeno de projeção são atribuídos à imagem. Assim, uma vez que um som acrescenta um sentido a uma imagem, este sentido parece emanar da imagem por si só, ou seja, o som fica sub-entendido na imagem. Simetricamente, o termo ‘visionaudition’ se aplica a um tipo de percepção que é conscientemente concentrada sobre o audível, como no caso do concerto, onde a audição está acompanhada, reforçada, em todo caso, transformada por um contexto visual que a influencia, podendo projetar sobre ela certas percepções.

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Para Chion, a relação entre imagem e som cria percepções totalmente diferentes. Não se vê a mesma imagem quando se ouve um som e não se ouve o mesmo som quando se vê uma imagem.

Vemos que na história da relação imagem e som elas sempre foram colocadas em comparação. Porém, interessa à pesquisa formas artísticas que revelam a tradução entre música e pintura e suas múltiplas formas de relação. Sabe-se que a relação ver/ouvir é muito antiga e acontece a todo tempo na televisão e no cinema. Mas o que se quer apresentar é como a pintura e a música podem fazer correspondências conceituais, como uma pode tomar o lugar da outra. Em que medida o som pode se tornar imagem e a imagem pode se tornar som.

Assim, não interessa à pesquisa a questão do cinema, entendido como mecanismo a priori de conjugação entre imagem e som. Vamos abordar o cinema em Vertov e Walter Rutmann justamente pela contradição dessa relação embrionária entre imagem e som. É importante observar as relações entre ver e ouvir nas primeiras experiências cinematográficas que problematizavam o princípio constitutivo da relação entre imagem e som. Quando Vertov preconiza um filme acústico, que seria necessário fotografar os sons, a problematização dessa relação imagem e som nasce junto com a experiência do cinema.

Em 1916, Vertov criou o Laboratório de Audição, onde realizava a montagem de palavras unindo música e literatura. O artista defendia conceitos como: ruído e sons fotográficos e filme acústico. Quando preconiza um filme acústico, Vertov propõe que seria necessário fotografar os sons. A problematização dessa relação imagem e som nasce junto com a experiência do cinema.

E eis que, num dia de primavera, em 1918, eu volto da estação. Guardo ainda no ouvido os suspiros, o barulho do trem que se afasta...alguém que faz juras...um beijo...alguém que exclama...Risos, apito, vozes, sinos, respiração ofegante da locomotiva...Murmúrios, apelos, adeuses...Enquanto caminho, penso: é preciso que eu acabe de aprontar um aparelho que não descreva, mas, sim, inscreva, fotografe esses sons. Caso contrário, impossível organizá-los, montá-los. Eles fogem como foge o tempo.

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Walter Ruttman, por sua vez, fez um filme sem imagens ou cinema para ouvidos, Weekend (1930). O filme tem uma duração de 11´20´´e é uma montagem de som pela película apresentando sonoramente a cidade de Berlim, construindo através de ruídos a paisagem sonora da cidade, gravações de vozes, fragmentos e música. Ruttman se preocupa com a conjugação do visual com o sonoro e que devemos relacioná-los abstratamente na montagem, fazer uma ligação mental entre o visual e o sonoro e que esta relação não deve ser sincronizada como vemos atualmente nos filmes. Ruttman vai investigar o que ele chama da relação entre música e pintura, como essa relação se torna possível com a experiência do cinema.

A preocupação de Ruttmann com o som no cinema revela-se objetivamente em seu texto Sound Films. Nele Ruttmann afirma que a única maneira possível de fazer um bom filme sonoro é pensar em um contraponto entre os modos de expressão visual e sonoro. E, dessa maneira, fazer um link mental” entre imagem e som, para que assim se construa um sentido. Ele dá alguns exemplos de como a montagem do audiovisual poderia ocorrer:

  • Você escuta uma explosão. Você vê a cara de uma mulher horrorizada.
  • Você vê uma luta de boxe. Você ouve os sons de uma multidão frenética.
  • Você ouve um violino lamentoso. Você vê uma mão alisando gentilmente outra.
  • Você escuta uma palavra. Você vê o efeito da palavra na cara de uma pessoa. 5

Para Ruttman a música não existe no cinema, ela perde sua característica de música, vemos a emergência do visual-sonoro ao mesmo tempo.

A relação embrionária do cinema, imagem e som não se dá em espaços separados, mas sim na constituição de um mesmo objeto. A ideia de Ruttman era fazer um cinema sonoro, que pudesse ser “ouvido” e não somente “visto”.